Fazia um silêncio perpétuo na noite, sua irmã estava dormindo na
sala sob a luz baixa de um lampião e o chiado repetitivo do rádio.
Hal subiu as escadas na ponta dos pés com o Popplio quase caindo de seus braços,
o Pokémon resmungava e estava louco para ser colocado no chão, mas se
lhe fosse dada essa oportunidade, Hal tinha certeza de que alguma coisa sairia errado e não conseguiria
causar a boa impressão que precisava.
Tudo
que tinha de fazer era convencer Miliani a aceitar mais um membro na família.
Ela era a nova alfa, era ela quem decidia as coisas
Abriu
a porta com todo cuidado possível e nenhum ruído se fez ouvir. Ficou descalço
para que os chinelos não fizessem barulho em contato com a madeira e
conseguiu atravessar a sala até seu quarto com sucesso. Assim que ele pôs
Popplio no chão, o Pokémon observou os arredores interessado, mas não fez nada. Ele só andava de lá para cá, como se estudando o ambiente. Hal pediu mais silêncio que o necessário com a ponta do indicador e fechou a
porta com cuidado, voltando para a sala para tentar acordar a irmã, Dia dormia
tranquilamente entre as pernas da mulher e tudo estava calmo e tranquilo até então. Talvez
fosse melhor esperar o dia seguinte quando ela estivesse menos cansada, mas
também não queria que ficasse ali na sala sem o mínimo de conforto, por
isso trouxe-lhe um cobertor e um travesseiro. Sem abrir os olhos, Miliani se
acomodou e agradeceu o gesto de carinho.
—
Não precisava...
—
Precisava, sim. Você arrumou a casa inteira e cuidou de tudo. Acha que é fácil?
— falou o irmão mais novo com um sorriso.
—
Não quis jantar hoje? — ela perguntou, sonolenta. — Fiquei esperando.
—
Desculpe. Eu estava ocupado conversando com alguns amigos meus — Hal omitiu o
fato de ter ido encontrar-se com Ika e Uko. Nunca falara sobre eles com a irmã.
Na verdade, ela também nunca perguntara quem eram os tais “amigos”. — E a propósito, eu os convidei para virem aqui no fim de semana
comer pizza, tudo bem?
—
Claro, querido — Mili respondeu, mas ela estava mais dormindo do que acordada e provavelmente não se lembraria
de nada no dia seguinte. — Me ajuda a levantar?
Hal
deu apoio para que sua irmã ficasse de pé, ainda meio cambaleante. Quando a viu
passar reto pelo corredor do seu quarto e ir direto para a cozinha, imediatamente ele correu e ficou
em sua frente na tentativa de impedir o progresso.
—
Não precisa preparar nada para eu comer, juro que estou sem fome!
—
E quem disse que eu ia fazer algo pra você comer? — Mili deu um sorriso de
canto. — Gosto de cuidar de você, mas você já é grandinho para algumas coisas, não sou a mamãe para te mimar toda hora. Só vou preparar um suco na geladeira.
—
E-eu pego pra você.
Ela
arqueou uma das sobrancelhas.
—
Hal. Você não sabe mentir. O que você aprontou?
—
Nada.
—
O que você quebrou?
—
N-nada.
Ouviu-se
o barulho de vidro trincado na cozinha, e subitamente todo o sono de Miliani
desapareceu. Ela dobrou o corredor e se deparou com a porta da geladeira entreaberta
e três dos potes de comida esparramados no chão. Os peixes congelados estavam
mordidos pela metade e o chão da cozinha que fora limpado naquele mesmo dia agora
estava sujo e fedendo à feira de domingo.
Hal
saía de mansinho quando sentiu alguém puxar-lhe pela camisa.
—
Ninguém dorme enquanto essa cozinha não estiver brilhando, ouviu?
—
C-claro, com o maior prazer... — sua voz era mansa, em contrapartida com a de
Mili que primeiro respirou, e por fim extravasou como um vulcão que entra em
erupção.
—
Como é que você consegue ser tão desastrado, Hal?! Olha só pra isso, parece que
entrou um jacaré na cozinha destruindo tudo! Lembra daquela vez o Salandit foi
atraído aqui para dentro e tivemos que chamar os policiais da vila para
retirarem ele em segurança? E quando fomos atacados por um bando de Cutiefly
selvagens e precisamos dedetizar a casa inteira?! Lembra como eu fiquei
irritada? ENTÃO. Some daqui.
Hal
já corria para seu quarto quando outro barulho foi ouvido, agora na sala. Se
dessa vez os dois estavam presentes, quem estaria aprontando? Mili foi atrás da
porta da cozinha e retirou dali um taco de baseball que
deixava pronto para emergências. Hal suava frio. O abajur de Lanturn próximo à mesinha de canto estava no
chão e o tapete de Stunfisk virado do avesso. Miliani estava para acionar a
polícia quando um furacão passou debaixo de suas pernas e a derrubou no chão,
indo correndo na direção de Hal que o pegou nos braços e desapareceu dali.
—
Não acredito que você trouxe outro Pokémon para dentro de casa! — Mili gritou, furiosa.
—
Mas ele precisa de mim! — uma voz distante ecoou em algum lugar na varanda.
—
Eu já disse que não podemos cuidar de ninguém se não conseguimos tomar conta nem de
nós mesmos, Hal! Já não basta o Dia comendo e roncando na sala!
— ...mas o Dia nos faz mais felizes!
— Às vezes acho que já temos felicidade o suficiente.
Miliani
escondeu-se estrategicamente atrás do sofá, e assim que Hal apareceu ela pulou
em cima dele na tentativa de agarrá-lo. Dia despertou na hora e começou a
latir, pulando de um lado para o outro na tentativa de fazer com que os irmãos
parassem a briga. O Pokémon que estava nos braços do mais novo acabou rolando e
transformando-se em uma bola que girou para fora da casa e despencou escada
abaixo. Os dois arregalaram os olhos e foram correndo ver o estrago que
causaram.
—
Meu Arceus, matamos o bicho! — gritou Mili.
O Popplio
estava estirado no final da escada com a língua para fora. Dia começou a
cheirá-lo, Mili estava para entrar em estado de choque. Hal ajoelhou-se
perto da criatura e o cutucou com um graveto.
—
Vish, olha só isso... Tá mortinho da silva.
—
F-foi sem querer! Ninguém mandou você me assustar, primeiro eu pensei que fosse
um bandido ou então outro Salandit gigante, aí você me aparece com um Popplio sabe-se lá de onde! O que fazemos agora, Hal?
—
Pegue a pá.
—
O que você pretende fazer com uma pá? — Mili perguntou, desconfiada.
—
O que você acha? Enterrar o pobrezinho. Se bem que a chance do Dia encontrar o
buraco e desenterrá-lo durante a madrugada também é enorme, então teríamos de
ter que conviver com um cadáver perambulando pela casa... Não é como se fosse
novidade para ninguém, afinal, já estamos meio que acostumados com fantasmas na
família, não é?
Miliani estava prestes a arrancar seus cabelos. Quando Hal se deu
conta de que os olhos da irmã ficaram marejado, percebeu que a situação
estava saindo do controle, e se havia algo que ele detestava era ver seu único
porto seguro desabar.
—
Ah, não... Mili, não faça isso.
—
Desculpa — sua voz falhou e foi levada pela brisa do oceano. — De verdade, foi sem querer.
No
momento seguinte, o Popplio abriu um dos olhos e deu um salto para trás,
esticando as nadadeiras para o alto, como se aguardando os aplausos da plateia. Miliani olhou para o Pokémon que estava vivinho da silva, depois para
o irmão que se segurava para não cair na risada, depois para Dia que babava ao
seu lado.
—
Vocês me enganaram — ela afirmou, mas a ficha ainda não tinha caído e ela
precisava de uma confirmação. — Vocês estavam encenando.
Nesse
momento Hal não se aguentou de rir. Se houvessem vizinhos ali por perto ele
certamente teria acordado todos eles, Popplio se gabava por suas habilidades teatrais e
Dia balançava o rabo sem entender o que tinha acontecido.
—
Ele não é o máximo? Podia até ser ator! Qual é, estava claro que não tinha
acontecido nada, mas você começou a levar tão a sério que eu entrei na
brincadeira! — Hal tentou explicar entre seus surtos e falta de ar. — Não ficou
brava, né?
—
Vocês quase me fizeram chorar.
—
Heh, heh. Pelo menos foi engraçado, não é?
O
sorriso desapareceu no rosto de Miliani, quando ela subiu para a cozinha e só voltou depois de encontrar seu taco de baseball. Popplio e Hal se entreolharam,
e nesse momento tiveram certeza de que estavam encrencados.
O
sol escaldante ardia lá fora, eram oito horas de um dia típico em Alola,
perfeito para uma tarde com os amigos na sorveteria. Kailani não cansava de
bater na porta, já estava ali esperando fazia cinco minutos e, impaciente do
jeito que era, não queria esperar nem um segundo a mais. Quando estava para
começar a gritar, a porta abriu-se e ela se deparou com Miliani toda descabelada em sua
frente, ainda vestida com os pijamas da noite anterior.
—
Bom dia, meu lírio do campo! Uau, essa é aquela camisola branca que eu te
dei? Lembro do dia que a escolhi, fica muito bem em você.
Miliani
não respondeu, seus olhos se fechavam automaticamente, carregados por
olheiras e o entusiasmo de alguém que passou a noite em claro. Kailani respirou
fundo e foi entrando para preparar uma xícara de café para ela. Ao chegar na sala
encontrou Hal que brincava no chão junto do Rockruff e uma nova visita.
Parecia que sua irmã finalmente fora convencida de deixar o Popplio passar uma noite na
casa.
—
E aí, guri! Quem é o seu novo amigo?
Popplio
foi pulando até ela, e quando Kailani ajoelhou-se para ficar na mesma altura o
Pokémon beijou sua mão num gesto teatral.
—
Nossa, e pelo visto ele é dos românticos! A-D-O-R-E-I — disse Kailani, dando um
forte abraço na criatura. — Que demais, eu não imaginava que algum dia a Mili
deixaria outro Pokémon entrar nessa casa!
—
Nem eu — respondeu Hal, olhando para a sala que só estava organizada porque alguém passara a noite inteira arrumando a bagunça e controlando três crianças exaltadas.
Miliani agora dormia de pé no encosto da porta da cozinha.
Kailani
sorriu e voltou-se para o garoto ao dizer:
—
Combinamos de tomar sorvete hoje.
—
Aproveitem. O dia está mesmo muito bonito — respondeu Hal, recebendo um
empurrão de leve no ombro.
—
E acha que eu não levaria meu cunhadinho junto? Sei que faz um tempão que você está morrendo
de vontade de passar na sorveteria VaniDelluxe e preparar um belo sorvetão daqueles com
direito a calda de chocolate, flocos, guloseimas e quatro bolas de diferentes
sabores! Malhei a semana inteira por este momento. Hoje é por minha conta, e vamos
levar os Pokémon junto!
Hal
abriu um sorriso de orelha a orelha, e Mili soube que não conseguiria dormir
naquele dia de qualquer maneira.
Foram
necessárias algumas horas de preparo, desde a maquiagem reforçada até a escolha
da roupa perfeita para sair. Pentear o cabelo, escolher os biquínis perfeitos, preparar as bolsas e, finalmente, depois de dois copos de café, Mili estava pronta
para passar um dia agradável ao lado do irmão e de sua melhor amiga. Dia já
carregava a coleira na boca, e Popplio não conseguia conter sua ansiedade. Hal colocou
seus chinelões e vestiu só uma camisa e sua sunga. Por um instante lembrou-se de
quando seus pais o levavam até a maior cidade de Alola na ilha norte, adorava
viajar de barco e sentir o vento na cara, e qualquer lembrança daquela sensação
confortava seu coração.
O
dia estava perfeito para uma caminhada, não era temporada de turistas, logo
poderiam aproveitar cada atração da cidade sem ter que competir por uma mesa
e duas cadeiras num barzinho mixuruca. Aos poucos Miliani foi se sentindo renovada, ela sorria
muito mais quando estava ao lado de Kailani, as duas eram como o sol e a lua, e Hal não conseguia imaginar sua vida sem elas.
A
sorveteria VaniDelluxe tinha mais de cinquenta sabores diferentes, incluindo
alguns bem exóticos como gosma de Muk e ferrugem de Klinklang, quem ousou
provar diz até que eram deliciosos, e gosma na verdade era só uva enquanto ferrugem algum tipo de creme com flocos. De fato a sorveteria fazia sua fama por
atender tanto os gostos tradicionais quanto os diferenciados com algo diferente para cada tipo existente no Mundo Pokémon.
Miliani
ficou só no chocolate tradicional enquanto Kailani pegou duas bolas de Sitrus
Berry mais leves. Hal misturou doce de leite de Bidoof, baunilha de Reshiram, morango de
Ditto e leite condensado de Miltank, sempre que tinha a chance de visitar a
sorveteria provava um sabor inédito. Dia estava sem a coleira e mesmo assim não
se distanciava, ele ficava andando na rua e chamando a atenção das pessoas que
passavam por perto junto do Popplio que adorava se exibir para o público. O
ventilador no teto não era o suficiente para aliviar o calor, Kailani sentia
seu corpo suar, mas quando olhava para a amiga ao seu lado só conseguia pensar
no quanto aquilo era sexy e em como gostaria de estar abraçada a ela.
—
Já imaginaram se nós vivêssemos em uma região fria como Sinnoh? — perguntou
Miliani. — Eu estava lendo numa revista outro dia que estão construindo um
hotel de luxo chamado Deluxe Heart na cidade de Hearthome, eu gostaria de ter a chance de visita-lo algum dia da minha vida.
—
Não acho que eu aguentaria viver sem o calor — respondeu Kai. — E tem mais, não
tenho vontade alguma de deixar Alola. Adoro o sol, adoro vestir roupas curtas,
adoro o povo hospitaleiro daqui e fazer programas como esse. Se vivêssemos em um lugar que
neva metade do ano, ninguém iria tomar sorvete! Seria melhor ficar em casa debaixo do
cobertor trocando carícias.
—
Eu acho que nós faríamos um baita sucesso — brincou Hal. — Digo, olha só para a
nossa pele! Já estou com marcas de camiseta só de vir pra cá. Bem que eu devia
ter passado protetor solar em casa, como a Mili falou...
Os
três riam e ficaram à toa naquela tarde monótona quando dois surfistas
também chegaram ao VaniDelluxe. Eles se sentaram em uma mesa ao lado das
garotas, e por um breve instante Mili trocou olhares com um deles. Ele era bem
alto e bonito, com cabelos loiros e olhos azuis, de uma beleza típica dos turistas; estava sem
camiseta e tinha um peitoral definido, sem contar que andava por aí
de sunga vermelha só para chamar a atenção mesmo. Ele era tão bonito e atraente
quanto um salva-vidas que Miliani tivera alguns rolos no verão passado. O outro amigo praticamente desaparecia ao seu lado. Sua
atenção só foi desperta quando Kailani fez um estalo com os dedos.
—
Ei, seu sorvete tá derretendo.
—
Ah! — Mili enfiou a colher inteira na boca e sentiu sua garganta
congelar.
—
Eita, vai com calma, linda! Desse jeito vou ficar com inveja — Kailani riu,
principalmente depois que sua amiga fazia caras e bocas. — Vou comprar uma água
para você e já volto.
Kailani
havia se distanciado. Hal comia seu sorvete, mas não prestava muita atenção no
que acontecia ao redor. Mili decidiu que daria uma espiada por trás da franja,
e quando virou-se notou de imediato que o turista mais atraente olhava para ela.
O contato visual foi um acidente. Má ideia. O outro rapaz riu e coçou a barba, mas foi o loiro
quem ofereceu seu refrigerante para ela.
—
Melhor você tomar isso antes que sua garganta congele.
—
Obrigada — Miliani agradeceu e bebeu tudo numa só golada.
—
Ei, acha que eu e meu amigo poderíamos nos sentar com vocês?
—
É claro. Quer ajudar para juntar as mesas?
—
De maneira alguma, uma dama como você não precisa fazer força!
Aconteceu rápido demais. Dois estranhos agora se uniam a eles e falavam sobre suas vidas, o que faziam na região e como adoraram Alola na primeira vez em que estiveram lá. Hal observava tudo, quieto. Quando Kailani voltou com a
garrafa de água na mão, viu que sua amiga estava perto demais de um cara sarado sem camiseta que parecia bem preocupado em fazê-la sorrir e
sentir-se à vontade. Eles mal tiveram tempo de se apresentarem quando Miliani viu
nos olhos da amiga que eles não eram bem vindos.
—
Oi, Kai! — ela ficou de pé no mesmo instante. — Espero que não se importe, mas convidei estes dois rapazes para se
unirem a nós.
—
É. Tá. Bacana. — a amiga respondeu com um sorriso forçado. — Quem são vocês?
—
Putz, que vacilo, não nos apresentamos! — disse o rapaz loiro. — Eu sou o
Dylan, e esse é meu mano Izrael “IZ”. Nós somos nativos de Hoenn e estamos aqui
de férias, Alola é a melhor região do mundo pra pegar umas ondas!
—
É irado — respondeu o sujeito que tinha cabelos bem longos que desciam
pelo seu rosto e se misturavam com a barba malfeita. Ele falava de forma bem
lenta e com sotaque carregado, fazia gestos estranhos com a mão e vivia
balançando a cabeça, como se estivesse viajando em outra dimensão.
—
É. Irado. — A voz de Kailani saiu seca. — Tá aqui sua água. Vou ao banheiro.
Ela
praticamente enterrou a garrafinha na mesa e saiu no mesmo instante. Dylan deu uma risadinha e Iz riu só para acompanhar enquanto Mili se desculpava pelas atitudes da amiga.
—
Ela é bem esquentadinha, né?
—
Digamos que seja só um pouco... ciumenta — respondeu Mili, ajeitando o cabelo atrás
da orelha. — Mas não se preocupem com isso, se tiverem a chance de conhecê-la
vão ver que ela é um amor!
—
Então seu nome é Miliani? Desculpe a apresentação informal, é que dá para ver de
longe esse seu cabelo prateado, e eu nunca vi uma garota com a cor assim! Você
pinta ou é natural? Parece até uma celebridade. Adorei o contraste com a sua pele.
—
Achei irado — repetiu Izrael, balançando a cabeleira.
Mili
sentiu o rosto ficar tão vermelho quanto uma maçã de tanta vergonha. Adorava quando falavam de seu cabelo.
—
Bem, a história é meio boba, vocês não iriam querer ouvir...
—
Eu ficaria ouvindo você falar o dia inteiro, se pudesse.
Hal
engasgou com o sorvete e teve que levantar-se para não vomitar. Dylan deu
alguns tapinhas em suas costas.
—
Vai com calma, pivete! Qual é o seu nome?
—
É Hala Kameahookohoia, moço. Mas todo mundo me chama só de Hal mesmo.
— Caramba, como é que você lembra de escrever tudo isso na prova? Hah, hah. E você é o que exatamente dessa formosa princesa de lindos cabelos prateados?
—
Marido.
Dylan
e Izarel começaram a rir enquanto Miliano corava, mas dessa vez de vergonha.
Ela trocou um olhar severo com o irmão, como se pedindo para que ele parasse
com a brincadeira.
—
Saquei, então você curte as mais velhas, não é? Um pouco de experiência é
sempre bom.
—
Ele é só meu irmão mais novo — respondeu Mili com pressa, como se tivesse o
intuito de deixar bem claro que não tinha um relacionamento com ninguém. Pelo
menos até agora.
—
Na verdade eu sou o segurança delas — Hal entrou na brincadeira. — Pode não parecer, mas eu tenho a força de
um Tyranitar, corro rápido como um Arcanine e nado como um Gyarados!
Dylan
bateu na mesa e esticou a mão para ele:
—
Maninho, eu já gosto de você! Precisamos surfar qualquer dia desses!
—
Surfe é o meu segundo nome.
— Pensei que fosse Kameahookohoia — Izrael coçou sua barbicha. — Mas Hala Surfe também é irado.
Emendando
no assunto, Dylan afastou-se da mesa e ergueu sua perna direita sem muita classe, só para mostrar uma
cicatriz que ele tinha mais ou menos na altura da panturrilha e que subia quase até sua coxa.
—
Tá vendo isso aqui? Essa cicatriz é um troféu, mano. Uma vez eu estava surfando
nas praias em Hoenn e fui atacado por um Huntail das profundezas. Ele me mordeu e
quase arrancou a minha perna, tive que tomar quase cinquenta pontos, e o
desgraçado inclusive deixou um dente preso na minha pele, dá uma olhada!
Dylan
ergueu seu colar e mostrou um dente de Huntail preso na ponta. Um Deep Sea Tooth
autêntico. Hal reconheceu aquela preciosidade no mesmo instante, e tanto ele
quanto Mili se encantaram com a história.
—
Minha nossa, você poderia ter perdido a perna de verdade? — disse a irmã. — Assim você nunca mais poderia surfar!
—
Podia mesmo. Mas se tivesse mesmo acontecido, acredite, eu daria um jeito. Poderia ter sido um Sharpedo, mas quer saber? Se fosse,
eu teria acertado ele bem no nariz. Não existe Pokémon selvagem que me impeça
de pegar uma boa onda, onde haja um desafio eu estou lá para superá-lo!
—
Posso ver seu colar? — perguntou Hal.
—
Claro, maninho.
Eles
conversaram por tanto tempo que nem se deram conta de que Kailani demorava para
voltar. Talvez ela tivesse saído para dar uma volta e tomar um ar fresco, e
quando Mili pensava em ir atrás dela, percebia que estava tão entretida que
jamais poderia deixar alguém tão bacana quanto Dylan ficar sozinho. E ele não
era gentil apenas com ela, ao notar que Hal estava fissurado pelo dente de
Huntail, fez-lhe uma oferta irrecusável.
—
Por que não fica pra você, cara?
—
Eu não poderia — respondeu Hal. — Esse dente é um troféu seu, são memórias. Não
podemos abandonar memórias assim tão facilmente.
—
Mais do que essa cicatriz que vai me acompanhar pro resto da vida? É só um
dente, parceiro, se prometer que vai guardar direitinho creio que fará melhor uso do que eu.
Hal
olhou para Miliani, como se pedisse permissão para aceitar a oferta.
—
Com uma condição — Dylan abriu uma ênfase. — Só se sua irmã me convidar para
jantar qualquer dia desses. Que tal amanhã?
Mili
prendeu a respiração e Hal caiu na risada. Por mais que achasse aqueles dois
bem esquisitos a princípio, estava começando a gostar deles. Izrael balançou a
cabeleira e concordou.
—
Pô, mano, um jantar ia ser irado!
Dylan
deu uma forte cotovelada nas costelas do amigo.
—
Quero dizer, pô, mano, tô ocupadão amanhã... Nem vou poder ir. Foi mal.
—
Perfeito! Só nós dois num jantar ao luar, faço questão de levá-la ao
restaurante mais caro em Alola!
—
Mas eu não posso deixar o Hal sozinho em casa — respondeu Mili.
—
Ele não pode ficar com seus pais uma única noite?
—
Nossos pais morreram.
O
silêncio foi constrangedor. Até Izrael que era meio lento percebeu que era hora de
ir embora. Dylan levantou-se, deu dois tapinhas no ombro do garoto e pediu que
ele ficasse com o colar do dente de Huntail até que se reencontrassem. Em seguida, olhou para
Mili, e naquela época não haviam celulares nem nada para que eles pudessem
manter algum tipo de contato. Dylan usou um papel de guardanapo mesmo para
anotar alguma mensagem secreta, e depois a deixou na mesa para que Miliani lesse com calma e pensasse com carinho no assunto.
—
Bem, então... eu acho que a gente se fala depois — Dylan deu uma piscadela.
—
Espere! Você vai continuar na ilha até quando? — ela perguntou.
—
Até o fim do mês. Mas dependendo da ocasião posso estender minha estadia.
Dylan olhou para Hal e bagunçou seus cabelos mais uma vez.
—
Cuida bem do meu amuleto, maninho. Que ele traga tanta sorte para a sua
vida quanto trouxe na minha.
Assim
que os dois foram embora, Miliani imediatamente abriu o guardanapo para ver o
que estava escrito. Hal tentou espiar de relance, mas sua irmã escondeu na
mesma hora.
—
O que ele falou? O que ele falou?
Seus
lábios tremiam e seus olhos estavam perdidos.
—
Disse que adorou me conhecer. E para eu encontrá-lo perto nas pedras na Rocha do Wailmer.
—
Quando? — Hal a pressionou.
—
Hoje.
—
Quem?
...e dessa vez era Kailani quem falava, que havia acabado de retornar. Miliani amassou o
papelzinho e jogou-o no prato, tentando disfarçar.
—
Onde você esteve esse tempo todo?
—
Eu estava sentada duas mesas atrás naquele cantinho.
—
Ah, então... você ouviu tudo?
—
Eu lá tenho cara de quem quer se meter nesse assunto? Você acha mesmo que sou ciumenta?
Nãooooo, imagina, eu, hein... A vida é sua! — respondeu Kailani de braços
erguidos, dando as costas e falando de uma maneira claramente aborrecida. — E a
propósito, me passa a comanda do Hal para eu pagar a conta dele. Você paga a
sua.