Archive for 2025
Deep Diving
Quando a temperatura de
Hoenn começa a beirar os 40º graus em uma tarde normal, eu já sei que o verão
daquele ano vai ser intenso. Desde aquele incidente envolvendo Groudon e
Kyogre, acho que nunca mais tivemos um dia “normal” por assim dizer. Em algumas
ocasiões, saímos para trabalhar vestindo moletom e calças pela manhã, almoçamos
sob um sol escaldante com uma garrafa de dois litros de água para não desidratar,
e voltamos para casa debaixo de uma chuva torrencial. Tudo isso em um único
dia. É, o aquecimento global não está para brincadeira.
Só quem mora em Hoenn
pode falar mal de Hoenn. Tente vir para a orla, naquele dia onde não sobra nem
um metro quadrado sem sombra debaixo do mar de guarda sóis, e mencione em voz
alta que não gosta das praias daqui — vão te queimar na fogueira.
Sempre fui fã do verão.
Ainda sou um desses adeptos ao Team Magma, reforço que eles estavam mesmo
certos e deveriam ter conseguido expandir a terra para suprir a crescente
demanda por solo onde as pessoas possam viver. Meus parceiros de longa data são
um Torkoal (bem velho) e o Solrock (mais velho ainda), enquanto minha esposa
cuida dos jardins com sua Bellossom ao lado.
Quando falo de verão,
talvez a minha maior lembrança sejam os amores — aqueles bobos da juventude que
vemos nos filmes. Acho que todo mundo deveria ter a chance de viver ao menos
uma paixão de verão em sua vida.
Apesar de eu adorar
minha terra natal, era de praxe que nas férias escolares os meus pais dessem
carta branca para que fôssemos viajar para Alola. No ano passado fizemos um
cruzeiro de luxo em família que seguiu a rota marítima mais famosa do oceano e
permaneceu 45 dias no mar; e no outro antes desse, eu e três amigos subimos no
iate da família e o capitão fez a travessia para as ilhas paradisíacas como se
fizéssemos um bate e volta para a cidade vizinha. Vim de uma família abastada e
frequentei uma mesma escola de elite do primeiro ano ao colegial, então durante
muito tempo a minha realidade era apenas essa — restrita, confortável e
previsível. Com o tempo, a vida se seria a professora mais exigente que eu já
tivera.
Quando ancoramos em
Alola, na nossa primeira noite na região, já estávamos participando de um luau
que eu nem sei como fomos convidados. Nunca fui do tipo que se aventura pelo
mundo, acho baboseira colecionar insígnias e apresentações são extremamente
supérfluas — meu negócio era me divertir, viajar e beijar garotas —, ou o sujo
falando do mal lavado. Nunca tive disciplina para ser treinador, coordenador,
pesquisador e afins. Parando pra pensar, talvez eu não fosse bom em nada; mas
diziam que eu tinha lábia e por isso sempre conseguia o que eu queria.
A festa estava toda
decorada com a temática dos nativos, com tochas iluminando o cenário, bebidas
coloridas em copões com um guarda-chuva de coração e um Comfey para cada
convidado enquanto três Oricorio dançavam a hula junto de suas belas
treinadoras.
Nos sentamos ao redor
de uma fogueira, cercados por almofadas e enormes pufes laranjas. Ficamos ali,
rindo alto, beliscando petiscos e observando o cenário como predadores
silenciosos antes de escolher uma presa. Eu e meus amigos andávamos sempre em
grupo — típico de adolescentes. Hoje, entendo como isso podia parecer
intimidador, mas na época achávamos que estávamos arrasando.
Depois de risadas
exageradas, comentários infantis e um leve erguer de sobrancelhas, um dos meus
amigos cutucou meu braço e disse:
— Aquela ali é o seu
número. Duvido você ir falar com ela.
— Me dá um segundo — respondi,
num tom presunçoso que eu dominava bem. Bastava uma golada de algo forte para
reunir coragem e despejar minhas piores cantadas. Se ao menos eu conseguisse
fazê-la rir, já seria uma vitória.
Quando uma atendente
baixinha passou ao meu lado, eu ergui o dedo e perguntei:
— Consegue trazer mais
duas garrafas pra nossa mesa?
A garota não se virou.
Achei estranho. Meus amigos riram, e eu, interpretando aquilo como um desaforo,
chamei de novo, dessa vez tocando o ombro dela.
— Dá licença. Alô? O
Meowth comeu sua língua?
Ela se virou de
repente, e seu olhar me atravessou como uma onda fria. Não havia raiva nem
medo, mas um desconforto silencioso, o tipo que faz o chão sumir por baixo dos
pés. Ela parecia deslocada, acuada com o barulho, as luzes, os risos — tantos
estímulos vindo de todos os lados.
Usava um vestido
florido delicado, sandálias simples, e os cabelos azuis tinham aquele aspecto
armado pela água salgada, decorados com pequenas conchas e pedrinhas coloridas.
Achei que fosse uma garçonete do luau, e só depois percebi o quão indelicado eu
tinha sido.
— Desculpa, eu... não
bebo — ela respondeu, educada.
Eu afastei minha mão no
mesmo instante. A garota fez um cumprimento cordial, pediu licença e se
afastou. Meus amigos caçoaram alguma coisa sem importância e insistiram para
que eu voltasse a prestar atenção na loira tatuada antes que ela fosse cantada
por alguém, mas minha mente já estava tomando um caminho diferente.
Menos de duas horas
depois, nós quatro já estávamos espalhados pela festa, cada um em um canto
atrás de algum rabo de saia. As conversas que tive não renderam nada. Sempre os
mesmos assuntos: “O que você faz da vida?
Vai voltar a estudar? Então você é mesmo filho daquela família?”.
Eu cansei daquela
festa. Fui até a beirada da varanda tomar um ar, ainda carregando uma garrafa
vazia só para ter o que segurar, mesmo sem sede.
Olhar o mar à noite é
uma das experiências mais engrandecedoras da vida, porque você não vê nada do
outro lado. É como estar diante do limite do mundo, e à frente, apenas o breu.
Durante a alta temporada, cruzeiros costumavam iluminar o horizonte com fogos
de artifício barulhentos, mas naquela noite em especial, o céu estava limpo e
pontilhado de estrelas que se pareciam com Minior coloridos.
Foi quando a vi,
sentada na areia. A garota de cabelos azuis.
Estava sozinha, de
joelhos juntos e descalça, desenhando algo na areia com a ponta do dedo. Larguei
a garrafa e preferi tomar coragem para descer até ela. Uma onda varreu o
desenho, apagando-o e molhando a ponta de seus dedos antes de recuar rápido,
tímida, como quem se envergonha de ter se aproximado demais.
— Opa — falei, sem
pensar em nada melhor. Me senti um idiota. Ela ergueu o rosto e, percebendo meu
constrangimento, sorriu com doçura.
— Oi. Quer sentar
comigo e olhar as ondas?
Assenti, incapaz de
dizer qualquer coisa. Naquele instante, toda a minha confiança — aquela
arrogância juvenil que eu acreditava ser charme — simplesmente evaporou.
— Estava barulhento lá,
né? Eu nem conseguia escutar minha voz.
— Sim. Mas a música é
boa.
— Eu prefiro lugares sossegados
— disse a garota, fazendo uma pausa antes de voltar a desenhar na areia. — Você
não é daqui, estou certa?
— Não sou. Vim de Hoenn
pra curtir as férias.
— Legal. Hoenn e Alola
são regiões parecidas. Você já viu... um Wailord? — perguntou quase em segredo,
a voz mansa como o som da maré. — A rota de migração deles acontece durante o
período de reprodução, quando buscam águas mais quentes, como o litoral de
Hoenn. Eles passam por Alola por causa da fartura de alimento. Fazem essa
jornada duas vezes por ano e levam uns dois meses em cada travessia.
Aquela observação tão
específica me arrancou um riso. Para uma garota tímida, ela parecia se sentir
estranhamente à vontade ao falar sobre os Pokémon aquáticos. Talvez a timidez
fosse só uma impressão minha. Durante a festa, mal pude escutar sua voz — mas
ali, sob o som calmo das ondas, ela não parava de falar. Me enchia de perguntas
sobre as praias que visitei, se eu acreditava na lenda de Kyogre e se já tinha
visto as correntes próximas à Ever Grande
City.
— Olha, eu não tenho
muito contato com Pokémon do tipo aquático — respondi, tentando acompanhar o
entusiasmo dela —, mas tive o azar de nascer numa região com literalmente “too much water”. Já visitei o aquário de
Mossdeep, o único no mundo que exibe Relicanth. Serve?
— Não brinca — ela exclamou,
e seus olhos pequenos como safiras brutas se iluminaram. — Os Relicanth são
fósseis vivos. Sempre quis pescar um, mas só vi relatos na Ilha Poni. Suas
escamas duras e as bexigas cheias de óleo ajudam a suportar a pressão do fundo
do mar. É incrível pensar que a espécie sobreviveu mais de cem milhões de anos
sem mudar, não é?
Soltei uma risada
abafada. Ela era adorável quando falava das coisas que gostava. Eu ainda não
sabia o seu nome, e ela também não me fizera nenhuma daquelas perguntas impertinentes
às quais eu estava acostumado. Com ela, não existia roteiro — e isso me
fascinava.
— Eu já devo estar te
cansado com esse assunto de peixes, não é? Me desculpa, às vezes sou esquisita.
— Não, não! — interrompi
rápido. — Achei... instrutivo. E fofo. Sinceramente, não sabia nem metade
dessas coisas, só continuei ouvindo porque queria te escutar mais. Nunca fui dos
mais inteligentes da classe.
Ela soltou um risinho que
fez suas bochechas se erguerem e respondeu com simplicidade:
— Heh, heh. Reprovei o
oitavo ano e zerei em matemática, química e física. Acho que sou burrinha.
— Uau, você é das
minhas. — Estendi o punho fechado e ela retribuiu o gesto com um toque leve. —
A turma do fundão unida pela derrota.
Ela riu de novo, e eu
percebi como adorava garotas que falavam sempre sorrindo como se tudo as
divertisse. O sotaque dela era carregado, mas desaparecia quando falava sobre
biologia e os Pokémon do mar; voltava apenas quando se sentia nervosa.
Conversamos tanto que nem percebemos o tempo passar. Quando dei por mim, a
festa já tinha acabado, os organizadores empilhavam cadeiras e apagavam as
tochas uma a uma.
Meus amigos tinham
sumido, provavelmente voltado para o hotel com alguma companhia. Eu, no
entanto, não queria ir a lugar nenhum.
— Ei, desculpa pelo que
rolou mais cedo — eu comentei quando finalmente reuni coragem para tirar aquele
peso do peito, mas ela parecia totalmente alheia ao ocorrido.
— Ué, o que aconteceu
mais cedo?
— Eu te confundi com a
garçonete.
— Ah, relaxa, garotão.
Para de sabotar a sua mente e só aproveita o momento. Quantos anos você tem
mesmo? — ela me perguntou sem papas na língua.
— O suficiente —
respondi, tentando parecer adulto o bastante para impressioná-la.
Ela soltou ar pelo
nariz e riu outra vez.
— Aposto que nem devia
estar bebendo. É quase um Mucilon, tem muita coisa pra viver.
Devo ter feito uma cara
de espanto, porque sempre me disseram que eu parecia maduro pra minha idade,
embora esses elogios normalmente viessem de quem queria me impressionar.
— Você fala como se
fosse muito mais velha do que eu! Com essa altura toda, dá pra dizer até que ainda
está no ensino fundamental. Dá até pra te carregar no colo.
— Duvido que acerte a
minha idade. Te dou três tentativas — ela ergueu a mão e sinalizou com os
dedos, olhando ao redor enquanto buscava alguma coisa. — Se acertar, eu te dou...
essa Heart Scale!
Aceitei o desafio.
Chutei treze, quinze e dezoito. Ela negou todas, cruzando o braço em um X.
— Errado, errado e
errado. Agora não conto mais.
— Poxa, mas não é
possível que seja muito mais velha do que isso.
— Já tenho idade para
cuidar de mim mesma... mas estou sempre cuidando de outras pessoas.
Havia uma melancolia
escondida nas palavras dela, como quem foi obrigada a crescer antes da hora. E,
por algum motivo, eu quis mergulhar fundo naquela tristeza leve, entender o que
havia por trás. Nossos olhares se cruzaram e eu percebi pelo canto do olho que
ela ainda sorria enquanto terminava de desenhar na areia. Pequenos Wishiwashi
se juntavam, formando uma figura maior — uma espiral viva que parecia nos
envolver.
— Mas posso te falar
meu nome. — Ela pôs-se de pé num salto, seu vestido balançou e o rosto ficou
emoldurado pela luz da lua. Senti alguma coisa ser atirada na minha direção que
peguei no ar por puro reflexo. — Eu sou a Lana. A gente se vê por aí, garotão.
Quando abri a palma de
minha mão, notei a pequena escama com o formato de coração que brilhava com as
cores do arco íris. Voltei a procurá-la, mas Lana deixara para trás apenas as pegadas
como quem dançava livre na praia. Fiz menção de segui-la, mas algo me impediu —
seria uma afronta tirar tão bela criatura do ambiente ao qual pertencia,
banhada pela espuma do mar e a luz das estrelas.
i
Eu não sabia se algum dia voltaria a vê-la, mas a Ilha Akala era cercada pelo oceano — e, em Alola, tudo o que o mar separa, o destino costuma unir de novo.
Naquele tempo, o vilarejo de Konikoni ainda era uma área portuária em crescimento. Navios cargueiros, pesqueiros e barcos de turistas vinham e iam como marés alternadas, enquanto os visitantes buscavam praias menos movimentadas, fugindo do trânsito marítimo intenso. O calor fazia o chão brilhar, e o burburinho de gente animada se misturava a todos os idiomas. Os Loudred animavam as esquinas, disputando com as caixas de som quem seria o mais barulhento, até que alguém chamasse a polícia para acalmar os ânimos. A água de coco e o milho verde custavam o triplo, mas eu tinha um cartão sem limite e pouca preocupação na cabeça.
O mercado local estava fervilhando, com barracas coloridas enfileiradas nas ruas estreitas, exibindo colares de conchas envernizadas, pequenos Tirtouga esculpidos em pedra e lembranças com cheiro de maresia. Senti um cheiro de incenso e óleo aromático no ar, os mesmos usados nas massagens à sombra de cabanas de palha, onde senhoras aplicavam misturas feitas de pólen de Vileplume.
Eu caminhava tranquilamente com meus amigos pela orla quando senti alguém puxar meu braço. Achei que fosse mais um vendedor insistente tentando me empurrar uma bugiganga, mas então ouvi uma voz conhecida:
— Vem comigo que eu te
mostro um lugar que mais ninguém conhece.
Era Lana. Ela segurou
minha mão, e eu a segui sem pensar. Não sabia para onde íamos, e sendo bem
sincero, nem me importava.
Hoje, quando fecho os
olhos, lembro-me daquele trajeto como se assistisse um filme. Vejo-a caminhando
à frente, com o vento tocando seu cabelo azulado e o vestido leve esvoaçando
como um tornado imparável. Às vezes ela olhava para trás e sorria, só para
confirmar que eu ainda estava lá.
A estrada nos levou até
uma trilha escondida, onde o sol se filtrava por entre as folhas das palmeiras
e o chão era coberto por camadas de folhas secas. Passamos por riachos rasos,
por onde corriam pequenos Dewpider que fugiam quando nos ouviam chegar, e o som
das Wingull lá no alto se misturava ao farfalhar das árvores.
A paisagem se abriu de
repente. Lana me guiara até a sua praia secreta, uma enseada escondida entre
falésias cobertas de musgo, como se a própria natureza quisesse escondê-la. A
areia era branca e leve, e a água, tão cristalina que dava para ver cardumes
inteiros passando entre os recifes. Ali, os Pokémon marinhos faziam do lugar
seu refúgio: Mareanie descansavam lado a lado com alguns Corsola rosados, os Pyukumuku
se espalhavam como pedras vivas ao sol, e um gigantesco Exeggutor nativo
balançava preguiçoso, lançando sombra sobre tudo ao redor.
Mal tive tempo de
admirar a paisagem, e Lana me empurrou da beira do penhasco com uma risada.
— Eita! — gritei, antes
de despencar na água.
Comecei a balançar as
mãos e a acabei por puxá-la junto, nós dois rolamos e caímos dentro da água que
mais parecia uma piscina natural. Estava quente e aconchegante. Lana começou a
rir, jogando água em mim e nadando com a graça de um Pokémon em seu habitat
natural.
De repente, ela
mergulhou fundo e desapareceu. Um minuto, dois, três. O tempo se alongou e meu
peito começou a apertar.
— Lana? — chamei com o
coração acelerado.
Quando a superfície
rompeu, ela surgiu com o rosto iluminado e uma escama rosada entre os dedos.
— Olha só o que achei! Deve
ter sido trazida pela maré alta. Se for o que estou pensando, veio das
profundezas.
— Você foi buscar isso lá
embaixo? Como foi que ficou tanto tempo sem respirar?
— Com um pouquinho de
prática — respondeu Lana. — Sabia que o recorde mundial é de um mergulhador de
uma ilha vizinha? Onze minutos e trinta e cinco segundos sem equipamento! Os
profissionais chamam de apneia estática, mas os nativos daqui fazem isso desde
sempre. Aprenderam caçando Pokémon dentro das grutas.
E então, seu corpo
começou a boiar e ela ficou ali olhando para o céu que não tinha uma nuvem
sequer.
— Eu amo esse lugar.
Eu fiz o mesmo, e flutuei
ao lado dela. O som das ondas, o toque da água morna na pele e a presença dela
criavam um silêncio que não era vazio, eu sentia como se o mundo respirasse
conosco.
Conversamos por horas,
sobre tudo e sobre nada. Pela primeira vez, não quis falar de mim, nem das
viagens ou das festas. Eu queria ouvi-la falar sobre Alola, sobre o mar, sobre
o que ela sonhava quando fechava os olhos.
Às vezes, ficávamos
apenas quietos. Lana fazia o silêncio parecer confortável, não uma cobrança. Onde
eu cresci, o silêncio sempre vinha acompanhado de perguntas: “O que foi? Tá
bravo? Aconteceu alguma coisa?”. As pessoas costumavam gostar de ficar ao meu
lado, porque eu era o cara que as fazia rir, mas nem sempre eu estava disposto
a ser o trouxa da conversa. Ela não me obrigava a nada
Só saí da água quando
meus dedos já estavam enrugados. Deitei na areia, deixando o corpo secar ao
sol. Um Pikipek curioso se aproximou, bicando a beira da minha toalha antes de
voar de volta para as palmeiras. O Exeggutor balançava lá em cima, projetando
sombras que iam e vinham como ondas.
De repente, senti outra
sombra se aproximar. Abri só um dos olhos para espiar. Lana estava na minha
frente com as roupas molhadas coladas ao corpo e um sorriso travesso nos
lábios. Ela segurou a saia com as duas mãos e levantou só a ponta até a altura
das coxas, como se quisesse me mostrar algo.
— Quer ver o que tem
por baixo?
Eu comecei a gaguejar e
não expressei nenhuma frase que fizesse sentido. Ela riu alto, como o som do
mar quebrando nas rochas.
— Eu tô de maiô,
bobinho!
Senti o rosto corar.
Nenhuma garota tinha me deixado tão sem chão antes. E ela sabia disso. Quando a
fome começou a bater, Lana se virou para mim e disse, com um brilho travesso
nos olhos:
— Quer passar lá em
casa comigo?
Por um momento eu
esqueci como se flertava. Normalmente eu era o cara que fazia o convite, mas
agora era diferente e eu só conseguia pensar: o que eu deveria levar? Será que
ela realmente queria dar aquele
passo? Estávamos tendo um dia tão leve juntos, e ainda assim, eu não sentia
nenhuma malícia vindo dela.
— Tudo bem, deixa só eu
passar no mercado antes — falei, tentando parecer tranquilo, mas por dentro meu
coração batia mais rápido do que um Wingull em corrente ascendente.
Lana parou na padaria e
comprou apenas quatro pães. Deduzir que havia mais gente em casa me aliviou um
pouco, então perguntei se ela queria que eu levasse algo, mas Lana apenas
abanou a cabeça.
— Pode colocar junto
também trezentas gramas de queijo e presunto — eu falei para a atendente. —
Quero pães de queijo, donuts, sonho e aquele bolo de milho com goiabada
inteiro. Ah, e iogurte. Passa nesse cartão.
Lana parecia
envergonhada, segurando discretamente a barra da minha camisa. E eu pensei em
minha mãe, que me esfolaria vivo se soubesse que fui visitar alguém de mãos
abanando.
A casa dela ficava um
pouco afastada da vila. Era uma cabana simples feita de madeira entreposta que
rangia com o vento do mar; as paredes tinham pequenas brechas por onde passava
a luz do entardecer, e o chão cheirava a areia seca. O ventilador de teto
girava preguiçosamente, sem muito sucesso contra o calor. Tudo ali tinha um
toque caseiro: conchas empilhadas em potes de vidro, desenhos infantis de Pokémon
colados nas paredes e um tapete azul desbotado com estampa de Tentacool. Um
Luvdisc de cerâmica servia de porta-incenso. O ar tinha o perfume doce de
maracujá e sal.
— Harper, Sarah,
cheguei! É bom que vocês tenham descongelado a comida e feito tudo que eu
mandei, ou vocês vão ver só.
Duas meninas idênticas
vieram correndo do quintal com as mãos sujas de vermelho. Eram gêmeas,
sorridentes e falantes. Sua energia parecia vir do próprio sol de Alola.
— Quanta comida boa! Eu
tava morrendo de fome. E eu amo pão de queijoooo! — disse uma delas, mas eu
ainda não sabia distinguir quem era quem. A segunda me olhou dos pés à cabeça e
falou em tom de malícia:
— E quem é esse aí? —
perguntou a outra, com o olhar travesso. — Tá namorando escondido, Lana? A
mamãe sabe?
Lana nem se deu ao
trabalho de responder. As mais novas esperavam o pão ficar pronto enquanto seus
pés descalços balançavam sob o piso de madeira. Lana colocou um avental surrado
com a estampa de um Snorlax para dar conta da louça enquanto preparava
sanduíches e também esquentava a comida de sua avó. Eu não tinha percebido até
então que havia uma televisão de tubo velha ligada na sala com o som bem
baixinho, a princípio imaginei que só estivesse ali para que o som preenchesse
a casa, mas havia uma idosa sentada de frente em absoluto silêncio e sem mexer
um músculo sequer.
— Fica à vontade, tá? —
disse Lana sem olhar pra mim. — E se as duas começarem a fazer perguntas
demais, pode ser grosso com elas.
Eu assenti e me sentei
junto à mesa. O que Lana tinha de calma e tranquila, suas irmãs mais novas se
mexiam feito duas Ninjask. Harper e Sarah me contaram que tinham acabado de
completar dez anos e me bombardearam de perguntas interessantes: de onde eu
vinha, se já tinha conhecido algum membro da Elite 4, qual era minha
Eeveelution preferida e se já tinha visto os Mantine forrarem o oceano durante
a rota de migração.
— A Lana bem que está
precisando de um namorado, sabe? — comentou Sarah quando já estava de barriga
cheia. — Ela vive cuidando da gente e da vovó desde que a mamãe começou a
trabalhar dois períodos.
— É porque se eu deixar
vocês duas soltas, vocês destroem a casa — respondeu Lana de costas.
— E ela tá mais
rabugenta do que o comum — acrescentou Harper.
— Não imaginei que
vocês já tivessem dez anos — comentei, pensativo. Eu estava acostumado a ver as
garotas enchendo o rosto de maquiagem, tentando agir como mulheres mais velhas
e por isso se vestiam querendo ser adultas para impressionar. Mas as gêmeas
pareciam genuinamente crianças que saíam para brincar na rua, longe de
aparelhos eletrônicos, fingindo brincar de jornada Pokémon. Elas viviam com
leveza.
Quando já estavam
satisfeitas depois de tanto comer, as gêmeas se levantaram uma de cada lado e
me puxaram pelos braços.
— Tio, quer vir colher
algumas Razz Berry com a gente? — perguntou Sarah. — A árvore está cheia e
queremos colher antes que os Pikipek venham devorar tudo!
— A mamãe sabe fazer
licor de amoras. Só que a gente não tem idade para beber, e por pedimos pra ela
fazer sem álcool e aí fica parecendo suco.
— E ele também não tem
idade pra beber — retrucou Lana, apontando uma colher de pau na minha direção. —
Nada de álcool nessa casa pro senhor também, já te vi aprontar lá no luau.
Eu adorava o jeito como
ela se fazia de durona e tentava cuidar dos outros. Seu semblante estava mais disperso
desde que chegamos, como se estivesse muito longe dali, mas ela prestava muito
atenção no que acontecia ao redor quando ninguém estava olhando e tomava conta
de sua avó acamada sozinha.
Quando saímos para o quintal, me deparei com uma árvore carregada de
frutinhas vermelhas que tornavam seus galhos pesados. Eu nunca vira uma tão
cheia, e sua sombra oferecia calmaria e alimento em abundância para um casal de
Cutiefly que sobrevoavam ali perto. Comecei a ajudar as meninas a colher até
que minhas mãos ficassem sujas de vermelho, enchemos ao menos quatro cestas de
palha que ficaram até pesadas. As gêmeas se empolgavam por eu alcançar lugares
que elas não conseguiam nem com uma escada.
— Waaa, você é tão alto, tio! Você precisa vir aqui mais vezes para nos
ajudar, a árvore fica cheia o verão inteiro!
— Prova uma, prova uma!
— disse Sarah.
Estava tão doce que
ainda me lembro do sabor. A hora passou voando, como se estivéssemos brincando.
Lana se juntou a nós depois de dar comida e trocar as fraldas de sua avó, e
quando nos demos conta, todos já estavam com fome de novo. Para o café da
tarde, ela preparou ovos na frigideira, recheando um pedaço de pão crocante com
manteiga. Eu poderia comer sua comida pelo resto da vida que seria um homem
feliz.
Dizem que o laranja do
céu de Alola ao entardecer é único e não pode ser encontrado em nenhum outro
lugar do mundo. Vim aqui só para concordar. Eu emolduraria a imagem que tantas
vezes vi diante de mim, mas nunca fui capaz de capturar essa sensação nem mesmo
através das melhores câmeras fotográficas. Se tiver a chance de ver por si só
algum dia, eu digo apenas — vá.
A mãe de Lana chegou por
volta das oito, completamente exausta do trabalho, embora envolta por um
sorriso genuíno ao ver que tinham visita. Ela era uma mulher baixa, com cabelos
azuis semelhantes aos de Lana e penteados para o lado. Tanto mãe quanto filha
tinham um olhar disperso, como se enxergassem através de mim. Seu jeito materno
e cuidadoso, tanto que quando me cumprimentou, parecia encantada por ver um
homem na casa.
— Ah, nossa, fazia
tanto tempo que a Lana não trazia alguém... Você não é de Alola, certo?
— Não, senhora.
— Por favor, “senhora”
aqui é só a minha mãe! Puxa, e você comprou tanta comida, quanta atenção de sua
parte.
Nós nos sentamos na
sala e a mãe de Lana me falou um pouco sobre a sua família. Me contou que agora
viviam apenas elas; quando o marido aparecia, era para causar algum problema.
Lana e as irmãs cuidavam da avó que tinha demência e não conseguia mais falar
ou se mover, carecendo de cuidados quase que 24 horas por dia. Por isso Lana
parecia sempre tão apressada em voltar, se limitando a passar apenas algum
tempo fora de casa. Devia ser exaustivo, mas eu apreciava o esforço daquela
família em cuidar de um parente ao invés de mandá-la para um asilo.
Enquanto falávamos
sobre obrigações, futuro e o preço elevado da comida na época que o turismo
estava em alta, de repente a mãe dela me soltou uma pérola:
— Lana, que partidão,
hein? Esse aí é pra casar.
— Ele ainda tá na sua
frente, mãe.
— Ah, estou só falando
pra você não bobear demais, se não quem vai querer sou eu! E você já está na
idade e achar alguém para morar junto.
Lana sorriu sem mostrar
os dentes, mas foi um riso desconfortável. Era como se ela já tivesse aceitado
que nunca iria se casar, nem seria uma boa esposa. Eu acho que ela sentia que
era apenas uma garota que sabia fazer pão na chapa com ovos, mas isso não
significava que daria conta de todas as outras funções que um relacionamento
exige.
— Tio, aproveitando que
você é alto, pode trocar a lâmpada do nosso quarto? — perguntou Sarah.
— Não! — Lana retrucou
na hora, levantando-se e me puxando pelo braço. — Ele não veio aqui pra
trabalhar, veio pra relaxar. Olha, é por isso que eu não trago mais ninguém pra
casa, daqui a pouco vão pedir pra ele arrumar até a goteira no telhado!
Lana me levou até o seu
quarto e fechou a porta. Percebi que ela trancou. Era um quarto de menina, e
ela claramente só dormia ali porque tinha de compartilhar o beliche com as
irmãs. Eu gostei do abajur delicado em forma de Luvdisc, mas não havia muito
espaço para quase nada. Um pensamento me irrompeu e fiquei chateado ao pensar
que o meu quarto devia ser maior do que a casa inteira das garotas, e com
frequência eu vivia reclamando da falta de espaço.
Lana ficou parada de
frente para a porta, como se finalmente tivesse tido tempo para respirar depois
de um mergulho prolongado. O ventilador no teto girava tão fraco que ali devia
ficar parecendo uma sauna nos dias mais quentes do ano.
Nós finalmente nos
sentamos um ao lado do outro para descansar. Lana dobrou os joelhos e deu dois
tapinhas sobre as coxas, me convidando:
— Vem. Deita aqui. Quero
te olhar.
Encostei a cabeça nela
e quase adormeci no seu colo. Perguntei como era cuidar de uma avó doente, e
ela respondeu apenas: “Cansativo”. Perguntei se ela conseguia dar conta de duas
irmãs mais novas, e ela respondeu: “Eu me esforço”. Não quis ser invasivo para
falar sobre dinheiro, mas o pensamento me ocorreu.
— Vamos só... ficar
aqui quietinhos, em silêncio. Tudo bem por você?
Eu concordei. Tinha
adorado a família dela. Todas me receberam tão bem, me senti acolhido como há
muito não acontecia. Quando passou das dez, eu soube que era hora de ir embora,
mas as meninas insistiram para que eu dormisse na casa junto delas.
— Por favor, por
favorzão! — disseram Sarah e Harper quase juntas. — A gente pode dividir um
colchão, e você e a mana dormem no beliche! Se bem que o seu pé deve ficar pra
fora...
— Não se preocupem,
estou em um hotel aqui pertinho. E eu me sinto tão sossegado em Alola que posso
voltar andando numa boa.
— Cuidado para um
Sandygast não te assustar, eles adoram se esconder na orla nessa época do ano —
brincou a mãe de Lana.
— Waaaa, você tá naquele
hotelzão chique de frente pro oceano? — Harper deu-se conta de repente. — A
mana já trabalhou lá, só tem celebridade!
— Sim, sim! Ela limpava
quartos, mas odiava o trabalho — comentou Sarah. — Você sabia que ela chegou a
ser cotada pra ser kahuna da ilha também?
— O que é um kahuna? —
perguntei.
— É tipo um líder de
ginásio desses que têm nas outras regiões, só que muito mais legal, porque eles
são escolhidos pelos nossos lendários guardiões! Quando a mana tinha quase a
nossa idade, ela foi escolhida como capitã para o desafio da Ilha Akala. A mana
era uma treinadora incrível, sabe?
Fez-se um silêncio
constrangedor, mas tão logo Lana sacudiu a poeira das roupas e se levantou.
— Tá bom, vocês já
estão contando demais da minha vida. — Ela praticamente me empurrou para a
porta, mas eu sabia que se dependesse daquela família eles nunca mais me
deixariam sair. — Deixa que eu te acompanho até a estação. E vocês duas, vão já
botar o seu pijama que eu ainda preciso colocar a vovó pra dormir!
— Pode deixar que eu
faço isso hoje, querida — respondeu sua mãe. — Você já fez muito.
Eu me despedi da família, já com aquela saudade antecipada que vem antes mesmo da ausência. A rua estava vazia, mergulhada num silêncio quente que era cortado pelo som distante das ondas e o zumbido elétrico dos postes. A luz amarelada era refletida pelas poças deixadas pela maré. Sinto falta disso agora — das noites que pareciam respirar junto com a gente, antes que as luzes frias de LED tirassem a alma das ruas.
O cheiro salgado de maresia fazia contraste com o adocicado das mangas maduras que preenchiam o ar. Cada passo levantava um restinho de areia com grãos se acumulando nas tiras do meu chinelo. Hoje, sorrio ao pensar que era como se o mar se recusasse a me soltar. Lana caminhava ao meu lado, em silêncio. Ela parou de repente de frente pra mim com as mãos escondidas atrás do corpo, como se esperasse que eu dissesse algo.
— Eu adorei passar o dia com você — falei, antes que o momento escapasse. — Será que posso te ver outra vez antes que essas férias terminem?
Ela abaixou o olhar e deu um meio sorriso.
— Claro. Konikoni é pequena. Vamos acabar nos trombando o tempo todo.
— Eu já decidi — brinquei. — Não quero visitar nenhuma das outras ilhas de Alola.
Ela riu, e a risada me fez querer protegê-la todos os dias.
— E o que rolou naquela história de ser capitã? Por que parou? — perguntei.
— Porque eu já estou velha demais para seguir alguns sonhos bobos da infância.
— Não me parecia ser algo bobo.
— Esquece essa história...
— É que não consigo entender por que você simplesmente desistiu de um sonho importante assim.
Lana parou e me olhou de uma maneira que me fez sentir como se estivesse me afogando.
— Eu só fiz o que devia fazer. Chega um momento da vida onde você percebe que dar o seu melhor não é mais o bastante. E só para completar essa história de ser capitã da ilha: depois dos vinte, os treinadores não podem mais se candidatar ou continuar no cargo. Entram novas gerações e você começa a ficar para trás. Eu tentei outras coisas, mas não me adaptei.
Houve um silêncio breve que não consegui contornar.
— Desculpa se fui invasivo — murmurei. — Só acho um desperdício o seu talento ser esquecido assim.
Ela me olhou, e por um instante seus olhos pareceram refletir o brilho amarelado dos postes.
— Relaxa, garotão. Todo mundo tem a sua vez ao sol. E agora a minha família precisa de mim.
— É nobre da sua parte, mas você não devia estacionar sua vida por causa delas.
Lana suspirou, o vento soprou uma mecha azulada sobre seu rosto e creio que ele tenha sido capaz de tocá-la com mais sutileza do que eu.
— Sabe o que eu tô morrendo de vontade de fazer? Pescar — disse ela, mudando o assunto de repente. — É sério, eu sou muito boa nisso. Podemos competir pra ver quem pesca o Pokémon mais raro, ou o maior de todos!
— Isso é um convite pra um encontro?
— Isso definitivamente é um convite pra um encontro. Fico feliz que goste de passar tempo comigo, mesmo que a gente não faça nada demais — disse ela, e o tom de sua voz foi diminuindo. — Às vezes acho que não sou interessante o bastante para que as pessoas me queiram ter por perto.
— Não brinca — respondi. — Eu já tô pensando em maneiras de passar todos os dias das minhas férias com você.
— E os seus amigos?
— Deixa eles pra lá. Já devem estar ocupados com outras garotas.
— Eu te dou um mês pra enjoar de mim — ela riu balançando os braços.
— Isso é um desafio?
— É um aviso. — Lana pegou impulso no pequeno muro de pedras e se aproximou o suficiente para eu sentir o cheiro salgado de sua pele. — Toma cuidado, garotão. Se mergulhar fundo demais, pode ser difícil voltar pra superfície.
ii
Tentei fazer proveito de cada dia das minhas férias. Alguns dias eu sentia que éramos feitos um para o outro; já em outros, parecia que falávamos idiomas diferentes. Quando relembro essas memórias, posso lhe contar apenas o meu lado da história. Reconheço que falei coisas erradas e que em algum momento as coisas começaram a desandar, parecia que caminhávamos para o último ato de uma comédia romântica e teríamos a nossa confiança um no outro testada.
O mercado de Konikoni fervilhava no final da tarde com luzes amareladas das lâmpadas antigas pendiam entre as barracas. O clima abafado fazia as roupas grudarem na pele, o ar tinha cheiro de sal, peixe grelhado e especiarias. Dava para escutar de tudo ao redor, gente barganhando, rindo alto, um tipo de preocupação alheia que não se via normalmente na cidade grande. Era como se todos ali vivessem um eterno fim de semana e a própria terra não deixasse ninguém esquecer que estava em Alola.
Aos domingos acontecia um evento de leilões de Pokémon raros. Um comerciante trouxera um exímio Clamperl Shiny de coloração única vindo de Hoenn, minha terra natal. A concha tinha um tom arroxeado reluzente e a pérola interna refletia um alaranjado suave, quase iridescente. Ela piscava os olhos tímidos, como uma criatura que entendia mais do que demonstrava. Eu senti pena, afinal, qual seria o motivo dela agora estar tão longe de casa? Teria sido levada de seus semelhantes apenas por apresentar uma coloração rara na natureza? Quando percebi, meu coração tinha decidido antes da minha razão.
Só me lembro do impacto que foi ver tantos zeros no visor da maquininha de cartão. Apertei “confirmar”, e fiz aquilo com um sorriso orgulhoso, quase infantil. Pensei no simbolismo que teria oferecer algo vindo da minha terra natal, Hoenn, para alguém que eu achava que compreenderia o gesto.
Marcamos um encontro em um restaurante que eu gostava em frente ao mar. Lana disse que não teria dinheiro para pagar, mas eu insisti. Ela chegou a sugerir que comêssemos em uma lanchonete ali perto, ou que comprássemos um pastel na feira. Para ela, o simples fato de compartilhar seu tempo com alguém que estimava já seria o suficiente, mas fui idiota em querer impressioná-la.
Quando coloquei a luxuosa Pokébola em suas mãos, fiz isso com carinho sincero, mas hoje percebo que o gesto pode ter parecido que eu a entregava uma aliança de compromisso na esperança de depositar todas as minhas expectativas em alguém.
— Obrigada, mas... não precisava. Não precisava mesmo.
— Mas você disse que gosta de presentes.
— Eu gosto. Mas isso custou muito...
— Mas eu quero poder garantir que você sempre terá acesso a coisas boas. Que possamos fazer viagens juntos, comprar o que você quiser em qualquer loja, comer em lugares chiques, e... Lana, se eu não puder te entregar nada disso, que serventia eu teria?
— Você acha que eu decidi conversar com você aquele dia no luau só porque você ou a sua família tem dinheiro? Isso nunca nem passou pela minha cabeça, e você também não precisa de nada disso para impressionar alguém.
— Mas o valor de um homem só pode ser medido pelo que ele é capaz de oferecer — retruquei agitado, sem me dar conta na tremenda besteira que eu tinha acabado de dizer.
Ela abriu a boca para dizer algo, mas decidiu se calar. Seu semblante voltou a parecer distante, quase humilhada. Finalmente tínhamos tocado naquele assunto proibido — dinheiro. Aquilo soou mais invasivo que qualquer pergunta sobre sua vida pessoal. Era como se, naquele instante, eu tivesse atravessado uma linha invisível. Dizem que para um relacionamento florescer é preciso que os dois lados estejam vivendo um momento parecido em suas vidas, buscando crescer juntos. Mas eu não conseguia entender por que ela se recusava tanto em agarrar a minha mão no momento em que a estendi para ela.
Eu também me senti ofendido, e depois pensei que a pobre Clamperl não tinha culpa de nada. Em outra ocasião já havíamos falado sobre viajar e conhecer o mundo, mas Lana insistia em não sair da ilha. Konikoni era sua âncora, e aquilo começou a doer.
— Até quando você acha que precisa continuar aqui cuidando da sua família? Lana, você também é um ser humano e merece seguir os seus sonhos. Não limite o seu potencial.
Ela levantou os olhos para mim com tristeza e disse que estava sem fome. Quando deixamos o restaurante, ela estendeu a mão em minha direção e disse:
— Vem. Vamos andar.
Caminhamos lado a lado no entardecer. Os postes lançavam aquele brilho amarelo e nostálgico que eu tanto gostava. A brisa do mar balançava os cabelos dela, mas ela não olhou mais para mim, ao menos não da maneira como costumava fazer. Às vezes eu achava que ela iria dizer algo, embora nunca dissesse.
Decidi ao menos acompanhá-la até a sua casa, pois já estava escurecendo. Quando chegamos, notei que havia um carro velho estacionado no quintal. Lana congelou e soltou minha mão.
— Preciso resolver uma coisa. Amanhã nos falamos.
— O que houve, Lana? Eu posso ajudar.
— É coisa minha. Vai dar tudo certo — ela respondeu apreensiva, e então, desapareceu como se confinada dentro de uma caixinha de papelão onde só existia ela e sua família.
O portão fechou atrás dela devagar, com um rangido torturante. Eu fiquei ali parado, com os pés fincados no concreto quente que ainda guardava o calor do sol.
Senti que aquele presente, vindo do fundo do mar, tinha criado uma pequena rachadura entre nós que aos poucos evoluiu para uma fissura no fundo do oceano. E como toda rachadura, ela só precisava de tempo para se expandir.
Lana bateu a porta
bateu com força e a casa pareceu engolir o som. Mesmo do lado de fora eu
consegui escutar alguma coisa, como se as paredes fossem finas demais para
conter as vozes que ali eram caladas. Ouvi o barulho de vidro encostando-se à
mesa, e depois, um choro abafado.
E eu não queria
escutar, mas escutei. Meu corpo inteiro reagiu antes da razão, a porta se abriu
para mim como se soubesse que eu precisava estar ali.
A casa que antes me
trouxera uma sensação tão boa de aconchego agora tinha um cheiro azedo de
álcool velho. As janelas estavam todas fechadas e ali dentro parecia um forno.
No centro de tudo, como se engolisse e crescesse diante das três garotas ali,
um homem cambaleava, segurando uma garrafa quase vazia. Seu rosto estava vermelho,
e olhos, sem foco.
— Eu já falei pra vocês
que essa casa é MINHA! — ele gritou. — Vocês só têm onde morar porque EU
permito isso!
Lana estava com as
irmãs pequenas no colo, segurando-as como se usasse o seu corpo para impedir
que a tempestade as atingisse. O rosto dela... o rosto não dizia nada. Nenhuma
raiva. Nenhum medo. Seu silêncio era tão profundo que parecia gritar mais alto
do que qualquer grito daquele homem.
Quando apareci na
porta, Sarah e Harper correram até mim aos soluços.
— É o tio! O tio veio!
Eu, que mal entendia o
que estava fazendo ali, de repente ganhei um papel que não pedi. As meninas se
agarraram às minhas pernas como quem encontra uma ilha para se refugiar.
O homem me encarou.
Parecia medir cada centímetro da minha aparência, como eu me vestia, o que
estava usando, criando toda uma ideia de mim antes mesmo que soubesse o meu
nome.
— Você não é daqui. O
que você quer com as minhas filhas?
— É só um amigo — Lana
respondeu rápido. — Deixa ele fora disso.
— Ele é mais do que
isso! — gritou Harper, num fio de voz. — Ou talvez... a gente queria que fosse.
O homem deu uma risada curta
e seca, fungando o nariz.
— Amigo, é? Não quer
namorar uma delas? Quem sabe assim tiro ao menos um desses pesos das minhas
costas. A Lana é cabeça dura e um pouco insuportável quando abre a boca, mas se
preferir as outras duas...
As crianças abaixaram a
cabeça. Lana cerrou os punhos. Meu sangue ferveu.
— O senhor está
alterado — falei, tentando manter firmeza. — Não devia falar assim na frente
das crianças.
— Alterado? Eu estou na
minha casa! — Ele deu um passo pra frente e quase tropeçou nos próprios pés. —
E falo o que quiser!
Ele não me intimidou. Em
minha frente eu via apenas um homem quebrado, consumido por vícios e
frustrações que só tinha ele mesmo a culpar. Um homem que afundava e tentava puxar
todos junto com ele para um abismo.
Quando percebeu que não
tinha mais força alguma para intimidá-las, ele resmungou alguma obscenidade e
virou-se para ir embora.
— Eu volto pra cobrar a
mãe de vocês — resmungou, apontando para as meninas com a garrafa. — A menos
que o seu amiguinho aqui queira pagar as contas, ou daqui a pouco v todos para
o olho da rua. Dinheiro não dá em árvore, vocês ouviram? Se ninguém aqui quiser
trabalhar e preferir ser uma vagabunda que nem a sua irmã, vão ter que aprender
a ser boas em outra coisa. Ser adulto é uma merda, mas pior ainda é ter que
bancar um bando de gente ingrata.
E saiu, batendo o
portão de ferro com força.
O silêncio que ficou
depois foi tão pesado que parecia criar forma. Lana soltou o ar, como se
tivesse segurado por anos.
— Me desculpe por ter
feito você passar por isso — ela murmurou, olhando para as próprias mãos, não
para mim.
Lana prometeu levar as
irmãs para tomar sorvete na manhã seguinte, mas pediu que elas fossem dormir
porque no dia seguinte teriam aula. Quando saímos, o ar abafado lá fora parecia
um alívio. Toda Konikoni parecia suspirar junto com ela.
— Lana, se o problema é
dinheiro, eu posso ajudar — falei outra vez, mesmo sabendo do perigo de entrar
naquele tópico. — Estou gostando muito de você. Pensei que se resolvermos as
coisas por aqui primeiro, depois você poderia passar um tempo comigo em Hoenn.
Seu semblante pareceu
sério, porém, gentil. Todas as vezes que tivemos aquelas “discussões”, Lana se
preocupou em não me magoar, mesmo que aquilo significasse esconder os próprios
medos e frustrações de mim. Ela me protegeu tanto que, em sua necessidade de me
ter ao seu lado, acabou me fazendo mal também.
— Você fala tanto sobre
viajar, estudar, crescer... eu acho tudo isso lindo. Mas o meu mundo é só isso.
— Lana olhou para a casa, como quem olha para um barco afundando, embora ainda
se recusasse a abandoná-lo. — Acho que você nunca abriria mão do seu mundo pra
viver o meu, e está tudo bem. Mas não finja que abriria.
Senti o chão sumir sob
meus pés, porque talvez ela estivesse certa.
— Lana, eu quero cuidar
de você. Quero que seja minha namorada. Vou te proteger. Posso te dar o mundo.
Isso não é o bastante?
— Você acha mesmo que
pode “me dar o mundo”? — disse com voz baixa, mas firme. — Você não quer cuidar
de mim. Quer se sentir útil. Quer preencher um vazio seu. Eu não preciso de um
salvador.
— Por que você é tão
teimosa? Eu só quero ajudar!
— Eu não quero dever
nada a ninguém! — ela respondeu, e sua voz finalmente quebrou. — Já basta o que
vivo dentro daquela casa. Por favor... não me prenda também.
Quando tentei
abraçá-la, ela se afastou num primeiro instante, mas então se lembrou das
tantas vezes em que encontrara conforto em mim, e por isso se deixou levar por
um sentimento que um dia existiu dentro de nós.
O abraço dela sempre
foi aconchegante, como um lar quente ao qual eu sempre desejei retornar. Ela
tocou meu rosto, como quem segura algo prestes a se partir.
— Por você eu
mergulharia fundo — murmurei. — Confio em você desse jeito.
— Por favor, nunca
compare a sua luz com a de ninguém. Você tem um brilho que é só seu, e você não
deve diminuir ele para que alguém se encaixe. O futuro é incerto, mas se dermos
um passo de cada vez, podemos enxergar algo. Nós escolhemos nosso caminho e bem
devagar vamos nos tornando adultos. Quando seu coração ficar pesado, feche os
olhos e tente escutar... eu estarei com você.
“Escutar? Escutar o
quê?”, pensei. Mas nunca perguntei.
Eu te falei que nunca
mais amaria ninguém, mas eu menti. Tantas vezes insinuei que iríamos para
qualquer lugar onde ninguém no universo pudesse nos encontrar. Iríamos mais uma
vez dançar sob a luz das estrelas com a areia branca sob nossos pés. Eu disse
que eu nunca te deixaria se sentir sozinha e que voltaria para te buscar, mas
não fui.
Amores de verão são
estranhos por isso — uma confusão intensa que arde como o sol, mas desmancha
como a chuva. Tentei me tornar uma pessoa melhor todos os dias. Não podemos
voltar ao passado para consertar os erros e nos pegamos imaginando: “Será que
teria sido diferente? Será que fiz errado em me abrir? O que há de errado
comigo?”.
Para Lana, ser ajudada
significava dever algo — e ela já devia demais ao mundo. Eu queria pavimentar
um caminho novo, mas ela queria consertar o antigo. Eu queria lhe dar amor, mas
ninguém nunca a ensinou como recebê-lo.
Não existe amor sem
honestidade. Para alguns é muito fácil entregar, mas difícil receber de volta e
se achar digno desse amor quando se passa uma vida inteira recebendo o mínimo.
Trancamos o nosso coração e entregamos a chave nas mãos de uma única pessoa,
mas às vezes o outro não estava pronto para se assumir como o guardião de
tamanho tesouro — o amor de alguém. Ou talvez eu que não tenha conseguido
prender a respiração por tempo o suficiente para mergulhar nela e entender os
seus problemas, abraçá-la sem tomá-los para mim, ter a maturidade de querer
crescer junto e entender que um relacionamento se constrói nas adversidades, e
não apenas na parte boa.
Muito tempo se passou
desde então. Eu nunca mais passei as férias com a família em Alola. Minha
esposa pediu que eu desmontasse o beliche de que estava infestado de Grubbin
comendo a madeira. No fundo de uma das gavetas, encontrei a Heart Scale perdida nos fundos,
ressecada, mas ainda emitindo um brilho suave nas cores do arco íris. Tantos
anos se passaram, mas aquele amor de verão ficou gravado em algum lugar que
nunca pude esquecer.
Fui até a praia
devolvê-la ao mar — o mesmo mar que carregava meus pés com calor, areia e
memórias que insistem em ficar mesmo quando não deveriam.
Um dia as lembranças
dela desaparecerão, como tudo nessa vida. Ainda me lembro desses dias com
ternura. O amor de um pode ser profundo e intenso, mas raso para o outro.
Sentei-me na areia quente e contemplei a maré chegar mansa. Fechei os olhos
para escutar o seu som que ainda carregava a voz dela, como um eco que
permanece.
— Posso ouvir o oceano.


















