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Deep Diving


Quando a temperatura de Hoenn começa a beirar os 40º graus em uma tarde normal, eu já sei que o verão daquele ano vai ser intenso. Desde aquele incidente envolvendo Groudon e Kyogre, acho que nunca mais tivemos um dia “normal” por assim dizer. Em algumas ocasiões, saímos para trabalhar vestindo moletom e calças pela manhã, almoçamos sob um sol escaldante com uma garrafa de dois litros de água para não desidratar, e voltamos para casa debaixo de uma chuva torrencial. Tudo isso em um único dia. É, o aquecimento global não está para brincadeira.

Só quem mora em Hoenn pode falar mal de Hoenn. Tente vir para a orla, naquele dia onde não sobra nem um metro quadrado sem sombra debaixo do mar de guarda sóis, e mencione em voz alta que não gosta das praias daqui — vão te queimar na fogueira.

Sempre fui fã do verão. Ainda sou um desses adeptos ao Team Magma, reforço que eles estavam mesmo certos e deveriam ter conseguido expandir a terra para suprir a crescente demanda por solo onde as pessoas possam viver. Meus parceiros de longa data são um Torkoal (bem velho) e o Solrock (mais velho ainda), enquanto minha esposa cuida dos jardins com sua Bellossom ao lado.

Quando falo de verão, talvez a minha maior lembrança sejam os amores — aqueles bobos da juventude que vemos nos filmes. Acho que todo mundo deveria ter a chance de viver ao menos uma paixão de verão em sua vida.

 

Apesar de eu adorar minha terra natal, era de praxe que nas férias escolares os meus pais dessem carta branca para que fôssemos viajar para Alola. No ano passado fizemos um cruzeiro de luxo em família que seguiu a rota marítima mais famosa do oceano e permaneceu 45 dias no mar; e no outro antes desse, eu e três amigos subimos no iate da família e o capitão fez a travessia para as ilhas paradisíacas como se fizéssemos um bate e volta para a cidade vizinha. Vim de uma família abastada e frequentei uma mesma escola de elite do primeiro ano ao colegial, então durante muito tempo a minha realidade era apenas essa — restrita, confortável e previsível. Com o tempo, a vida se seria a professora mais exigente que eu já tivera.

Quando ancoramos em Alola, na nossa primeira noite na região, já estávamos participando de um luau que eu nem sei como fomos convidados. Nunca fui do tipo que se aventura pelo mundo, acho baboseira colecionar insígnias e apresentações são extremamente supérfluas — meu negócio era me divertir, viajar e beijar garotas —, ou o sujo falando do mal lavado. Nunca tive disciplina para ser treinador, coordenador, pesquisador e afins. Parando pra pensar, talvez eu não fosse bom em nada; mas diziam que eu tinha lábia e por isso sempre conseguia o que eu queria.

A festa estava toda decorada com a temática dos nativos, com tochas iluminando o cenário, bebidas coloridas em copões com um guarda-chuva de coração e um Comfey para cada convidado enquanto três Oricorio dançavam a hula junto de suas belas treinadoras.

Nos sentamos ao redor de uma fogueira, cercados por almofadas e enormes pufes laranjas. Ficamos ali, rindo alto, beliscando petiscos e observando o cenário como predadores silenciosos antes de escolher uma presa. Eu e meus amigos andávamos sempre em grupo — típico de adolescentes. Hoje, entendo como isso podia parecer intimidador, mas na época achávamos que estávamos arrasando.

Depois de risadas exageradas, comentários infantis e um leve erguer de sobrancelhas, um dos meus amigos cutucou meu braço e disse:

— Aquela ali é o seu número. Duvido você ir falar com ela.

— Me dá um segundo — respondi, num tom presunçoso que eu dominava bem. Bastava uma golada de algo forte para reunir coragem e despejar minhas piores cantadas. Se ao menos eu conseguisse fazê-la rir, já seria uma vitória.

Quando uma atendente baixinha passou ao meu lado, eu ergui o dedo e perguntei:

— Consegue trazer mais duas garrafas pra nossa mesa?

A garota não se virou. Achei estranho. Meus amigos riram, e eu, interpretando aquilo como um desaforo, chamei de novo, dessa vez tocando o ombro dela.

— Dá licença. Alô? O Meowth comeu sua língua?

Ela se virou de repente, e seu olhar me atravessou como uma onda fria. Não havia raiva nem medo, mas um desconforto silencioso, o tipo que faz o chão sumir por baixo dos pés. Ela parecia deslocada, acuada com o barulho, as luzes, os risos — tantos estímulos vindo de todos os lados.

Usava um vestido florido delicado, sandálias simples, e os cabelos azuis tinham aquele aspecto armado pela água salgada, decorados com pequenas conchas e pedrinhas coloridas. Achei que fosse uma garçonete do luau, e só depois percebi o quão indelicado eu tinha sido.

— Desculpa, eu... não bebo — ela respondeu, educada.

Eu afastei minha mão no mesmo instante. A garota fez um cumprimento cordial, pediu licença e se afastou. Meus amigos caçoaram alguma coisa sem importância e insistiram para que eu voltasse a prestar atenção na loira tatuada antes que ela fosse cantada por alguém, mas minha mente já estava tomando um caminho diferente.

Menos de duas horas depois, nós quatro já estávamos espalhados pela festa, cada um em um canto atrás de algum rabo de saia. As conversas que tive não renderam nada. Sempre os mesmos assuntos: “O que você faz da vida? Vai voltar a estudar? Então você é mesmo filho daquela família?”.

Eu cansei daquela festa. Fui até a beirada da varanda tomar um ar, ainda carregando uma garrafa vazia só para ter o que segurar, mesmo sem sede.

Olhar o mar à noite é uma das experiências mais engrandecedoras da vida, porque você não vê nada do outro lado. É como estar diante do limite do mundo, e à frente, apenas o breu. Durante a alta temporada, cruzeiros costumavam iluminar o horizonte com fogos de artifício barulhentos, mas naquela noite em especial, o céu estava limpo e pontilhado de estrelas que se pareciam com Minior coloridos.

Foi quando a vi, sentada na areia. A garota de cabelos azuis.

Estava sozinha, de joelhos juntos e descalça, desenhando algo na areia com a ponta do dedo. Larguei a garrafa e preferi tomar coragem para descer até ela. Uma onda varreu o desenho, apagando-o e molhando a ponta de seus dedos antes de recuar rápido, tímida, como quem se envergonha de ter se aproximado demais.

— Opa — falei, sem pensar em nada melhor. Me senti um idiota. Ela ergueu o rosto e, percebendo meu constrangimento, sorriu com doçura.

— Oi. Quer sentar comigo e olhar as ondas?

Assenti, incapaz de dizer qualquer coisa. Naquele instante, toda a minha confiança — aquela arrogância juvenil que eu acreditava ser charme — simplesmente evaporou.

— Estava barulhento lá, né? Eu nem conseguia escutar minha voz.

— Sim. Mas a música é boa.

— Eu prefiro lugares sossegados — disse a garota, fazendo uma pausa antes de voltar a desenhar na areia. — Você não é daqui, estou certa?

— Não sou. Vim de Hoenn pra curtir as férias.

— Legal. Hoenn e Alola são regiões parecidas. Você já viu... um Wailord? — perguntou quase em segredo, a voz mansa como o som da maré. — A rota de migração deles acontece durante o período de reprodução, quando buscam águas mais quentes, como o litoral de Hoenn. Eles passam por Alola por causa da fartura de alimento. Fazem essa jornada duas vezes por ano e levam uns dois meses em cada travessia.

Aquela observação tão específica me arrancou um riso. Para uma garota tímida, ela parecia se sentir estranhamente à vontade ao falar sobre os Pokémon aquáticos. Talvez a timidez fosse só uma impressão minha. Durante a festa, mal pude escutar sua voz — mas ali, sob o som calmo das ondas, ela não parava de falar. Me enchia de perguntas sobre as praias que visitei, se eu acreditava na lenda de Kyogre e se já tinha visto as correntes próximas à Ever Grande City.

— Olha, eu não tenho muito contato com Pokémon do tipo aquático — respondi, tentando acompanhar o entusiasmo dela —, mas tive o azar de nascer numa região com literalmente “too much water”. Já visitei o aquário de Mossdeep, o único no mundo que exibe Relicanth. Serve?

— Não brinca — ela exclamou, e seus olhos pequenos como safiras brutas se iluminaram. — Os Relicanth são fósseis vivos. Sempre quis pescar um, mas só vi relatos na Ilha Poni. Suas escamas duras e as bexigas cheias de óleo ajudam a suportar a pressão do fundo do mar. É incrível pensar que a espécie sobreviveu mais de cem milhões de anos sem mudar, não é?

Soltei uma risada abafada. Ela era adorável quando falava das coisas que gostava. Eu ainda não sabia o seu nome, e ela também não me fizera nenhuma daquelas perguntas impertinentes às quais eu estava acostumado. Com ela, não existia roteiro — e isso me fascinava.

— Eu já devo estar te cansado com esse assunto de peixes, não é? Me desculpa, às vezes sou esquisita.

— Não, não! — interrompi rápido. — Achei... instrutivo. E fofo. Sinceramente, não sabia nem metade dessas coisas, só continuei ouvindo porque queria te escutar mais. Nunca fui dos mais inteligentes da classe.

Ela soltou um risinho que fez suas bochechas se erguerem e respondeu com simplicidade:

— Heh, heh. Reprovei o oitavo ano e zerei em matemática, química e física. Acho que sou burrinha.

— Uau, você é das minhas. — Estendi o punho fechado e ela retribuiu o gesto com um toque leve. — A turma do fundão unida pela derrota.

Ela riu de novo, e eu percebi como adorava garotas que falavam sempre sorrindo como se tudo as divertisse. O sotaque dela era carregado, mas desaparecia quando falava sobre biologia e os Pokémon do mar; voltava apenas quando se sentia nervosa. Conversamos tanto que nem percebemos o tempo passar. Quando dei por mim, a festa já tinha acabado, os organizadores empilhavam cadeiras e apagavam as tochas uma a uma.

Meus amigos tinham sumido, provavelmente voltado para o hotel com alguma companhia. Eu, no entanto, não queria ir a lugar nenhum.

— Ei, desculpa pelo que rolou mais cedo — eu comentei quando finalmente reuni coragem para tirar aquele peso do peito, mas ela parecia totalmente alheia ao ocorrido.

— Ué, o que aconteceu mais cedo?

— Eu te confundi com a garçonete.

— Ah, relaxa, garotão. Para de sabotar a sua mente e só aproveita o momento. Quantos anos você tem mesmo? — ela me perguntou sem papas na língua.

— O suficiente — respondi, tentando parecer adulto o bastante para impressioná-la.

Ela soltou ar pelo nariz e riu outra vez.

— Aposto que nem devia estar bebendo. É quase um Mucilon, tem muita coisa pra viver.

Devo ter feito uma cara de espanto, porque sempre me disseram que eu parecia maduro pra minha idade, embora esses elogios normalmente viessem de quem queria me impressionar.

— Você fala como se fosse muito mais velha do que eu! Com essa altura toda, dá pra dizer até que ainda está no ensino fundamental. Dá até pra te carregar no colo.

— Duvido que acerte a minha idade. Te dou três tentativas — ela ergueu a mão e sinalizou com os dedos, olhando ao redor enquanto buscava alguma coisa. — Se acertar, eu te dou... essa Heart Scale!

Aceitei o desafio. Chutei treze, quinze e dezoito. Ela negou todas, cruzando o braço em um X.

— Errado, errado e errado. Agora não conto mais.

— Poxa, mas não é possível que seja muito mais velha do que isso.

— Já tenho idade para cuidar de mim mesma... mas estou sempre cuidando de outras pessoas.

Havia uma melancolia escondida nas palavras dela, como quem foi obrigada a crescer antes da hora. E, por algum motivo, eu quis mergulhar fundo naquela tristeza leve, entender o que havia por trás. Nossos olhares se cruzaram e eu percebi pelo canto do olho que ela ainda sorria enquanto terminava de desenhar na areia. Pequenos Wishiwashi se juntavam, formando uma figura maior — uma espiral viva que parecia nos envolver.

— Mas posso te falar meu nome. — Ela pôs-se de pé num salto, seu vestido balançou e o rosto ficou emoldurado pela luz da lua. Senti alguma coisa ser atirada na minha direção que peguei no ar por puro reflexo. — Eu sou a Lana. A gente se vê por aí, garotão.

Quando abri a palma de minha mão, notei a pequena escama com o formato de coração que brilhava com as cores do arco íris. Voltei a procurá-la, mas Lana deixara para trás apenas as pegadas como quem dançava livre na praia. Fiz menção de segui-la, mas algo me impediu — seria uma afronta tirar tão bela criatura do ambiente ao qual pertencia, banhada pela espuma do mar e a luz das estrelas.

 

i

 

Eu não sabia se algum dia voltaria a vê-la, mas a Ilha Akala era cercada pelo oceano — e, em Alola, tudo o que o mar separa, o destino costuma unir de novo.

Naquele tempo, o vilarejo de Konikoni ainda era uma área portuária em crescimento. Navios cargueiros, pesqueiros e barcos de turistas vinham e iam como marés alternadas, enquanto os visitantes buscavam praias menos movimentadas, fugindo do trânsito marítimo intenso. O calor fazia o chão brilhar, e o burburinho de gente animada se misturava a todos os idiomas. Os Loudred animavam as esquinas, disputando com as caixas de som quem seria o mais barulhento, até que alguém chamasse a polícia para acalmar os ânimos. A água de coco e o milho verde custavam o triplo, mas eu tinha um cartão sem limite e pouca preocupação na cabeça.

O mercado local estava fervilhando, com barracas coloridas enfileiradas nas ruas estreitas, exibindo colares de conchas envernizadas, pequenos Tirtouga esculpidos em pedra e lembranças com cheiro de maresia. Senti um cheiro de incenso e óleo aromático no ar, os mesmos usados nas massagens à sombra de cabanas de palha, onde senhoras aplicavam misturas feitas de pólen de Vileplume.

Eu caminhava tranquilamente com meus amigos pela orla quando senti alguém puxar meu braço. Achei que fosse mais um vendedor insistente tentando me empurrar uma bugiganga, mas então ouvi uma voz conhecida:

— Vem comigo que eu te mostro um lugar que mais ninguém conhece.

Era Lana. Ela segurou minha mão, e eu a segui sem pensar. Não sabia para onde íamos, e sendo bem sincero, nem me importava.

Hoje, quando fecho os olhos, lembro-me daquele trajeto como se assistisse um filme. Vejo-a caminhando à frente, com o vento tocando seu cabelo azulado e o vestido leve esvoaçando como um tornado imparável. Às vezes ela olhava para trás e sorria, só para confirmar que eu ainda estava lá.

A estrada nos levou até uma trilha escondida, onde o sol se filtrava por entre as folhas das palmeiras e o chão era coberto por camadas de folhas secas. Passamos por riachos rasos, por onde corriam pequenos Dewpider que fugiam quando nos ouviam chegar, e o som das Wingull lá no alto se misturava ao farfalhar das árvores.

A paisagem se abriu de repente. Lana me guiara até a sua praia secreta, uma enseada escondida entre falésias cobertas de musgo, como se a própria natureza quisesse escondê-la. A areia era branca e leve, e a água, tão cristalina que dava para ver cardumes inteiros passando entre os recifes. Ali, os Pokémon marinhos faziam do lugar seu refúgio: Mareanie descansavam lado a lado com alguns Corsola rosados, os Pyukumuku se espalhavam como pedras vivas ao sol, e um gigantesco Exeggutor nativo balançava preguiçoso, lançando sombra sobre tudo ao redor.

Mal tive tempo de admirar a paisagem, e Lana me empurrou da beira do penhasco com uma risada.

— Eita! — gritei, antes de despencar na água.

Comecei a balançar as mãos e a acabei por puxá-la junto, nós dois rolamos e caímos dentro da água que mais parecia uma piscina natural. Estava quente e aconchegante. Lana começou a rir, jogando água em mim e nadando com a graça de um Pokémon em seu habitat natural.

De repente, ela mergulhou fundo e desapareceu. Um minuto, dois, três. O tempo se alongou e meu peito começou a apertar.

— Lana? — chamei com o coração acelerado.

Quando a superfície rompeu, ela surgiu com o rosto iluminado e uma escama rosada entre os dedos.

— Olha só o que achei! Deve ter sido trazida pela maré alta. Se for o que estou pensando, veio das profundezas.

— Você foi buscar isso lá embaixo? Como foi que ficou tanto tempo sem respirar?

— Com um pouquinho de prática — respondeu Lana. — Sabia que o recorde mundial é de um mergulhador de uma ilha vizinha? Onze minutos e trinta e cinco segundos sem equipamento! Os profissionais chamam de apneia estática, mas os nativos daqui fazem isso desde sempre. Aprenderam caçando Pokémon dentro das grutas.

E então, seu corpo começou a boiar e ela ficou ali olhando para o céu que não tinha uma nuvem sequer.

— Eu amo esse lugar.

Eu fiz o mesmo, e flutuei ao lado dela. O som das ondas, o toque da água morna na pele e a presença dela criavam um silêncio que não era vazio, eu sentia como se o mundo respirasse conosco.

Conversamos por horas, sobre tudo e sobre nada. Pela primeira vez, não quis falar de mim, nem das viagens ou das festas. Eu queria ouvi-la falar sobre Alola, sobre o mar, sobre o que ela sonhava quando fechava os olhos.

Às vezes, ficávamos apenas quietos. Lana fazia o silêncio parecer confortável, não uma cobrança. Onde eu cresci, o silêncio sempre vinha acompanhado de perguntas: “O que foi? Tá bravo? Aconteceu alguma coisa?”. As pessoas costumavam gostar de ficar ao meu lado, porque eu era o cara que as fazia rir, mas nem sempre eu estava disposto a ser o trouxa da conversa. Ela não me obrigava a nada

Só saí da água quando meus dedos já estavam enrugados. Deitei na areia, deixando o corpo secar ao sol. Um Pikipek curioso se aproximou, bicando a beira da minha toalha antes de voar de volta para as palmeiras. O Exeggutor balançava lá em cima, projetando sombras que iam e vinham como ondas.

De repente, senti outra sombra se aproximar. Abri só um dos olhos para espiar. Lana estava na minha frente com as roupas molhadas coladas ao corpo e um sorriso travesso nos lábios. Ela segurou a saia com as duas mãos e levantou só a ponta até a altura das coxas, como se quisesse me mostrar algo.

— Quer ver o que tem por baixo?

Eu comecei a gaguejar e não expressei nenhuma frase que fizesse sentido. Ela riu alto, como o som do mar quebrando nas rochas.

— Eu tô de maiô, bobinho!

Senti o rosto corar. Nenhuma garota tinha me deixado tão sem chão antes. E ela sabia disso. Quando a fome começou a bater, Lana se virou para mim e disse, com um brilho travesso nos olhos:

— Quer passar lá em casa comigo?

 

Por um momento eu esqueci como se flertava. Normalmente eu era o cara que fazia o convite, mas agora era diferente e eu só conseguia pensar: o que eu deveria levar? Será que ela realmente queria dar aquele passo? Estávamos tendo um dia tão leve juntos, e ainda assim, eu não sentia nenhuma malícia vindo dela.

— Tudo bem, deixa só eu passar no mercado antes — falei, tentando parecer tranquilo, mas por dentro meu coração batia mais rápido do que um Wingull em corrente ascendente.

Lana parou na padaria e comprou apenas quatro pães. Deduzir que havia mais gente em casa me aliviou um pouco, então perguntei se ela queria que eu levasse algo, mas Lana apenas abanou a cabeça.

— Pode colocar junto também trezentas gramas de queijo e presunto — eu falei para a atendente. — Quero pães de queijo, donuts, sonho e aquele bolo de milho com goiabada inteiro. Ah, e iogurte. Passa nesse cartão.

Lana parecia envergonhada, segurando discretamente a barra da minha camisa. E eu pensei em minha mãe, que me esfolaria vivo se soubesse que fui visitar alguém de mãos abanando.

A casa dela ficava um pouco afastada da vila. Era uma cabana simples feita de madeira entreposta que rangia com o vento do mar; as paredes tinham pequenas brechas por onde passava a luz do entardecer, e o chão cheirava a areia seca. O ventilador de teto girava preguiçosamente, sem muito sucesso contra o calor. Tudo ali tinha um toque caseiro: conchas empilhadas em potes de vidro, desenhos infantis de Pokémon colados nas paredes e um tapete azul desbotado com estampa de Tentacool. Um Luvdisc de cerâmica servia de porta-incenso. O ar tinha o perfume doce de maracujá e sal.

— Harper, Sarah, cheguei! É bom que vocês tenham descongelado a comida e feito tudo que eu mandei, ou vocês vão ver só.

Duas meninas idênticas vieram correndo do quintal com as mãos sujas de vermelho. Eram gêmeas, sorridentes e falantes. Sua energia parecia vir do próprio sol de Alola.

— Quanta comida boa! Eu tava morrendo de fome. E eu amo pão de queijoooo! — disse uma delas, mas eu ainda não sabia distinguir quem era quem. A segunda me olhou dos pés à cabeça e falou em tom de malícia:

— E quem é esse aí? — perguntou a outra, com o olhar travesso. — Tá namorando escondido, Lana? A mamãe sabe?

Lana nem se deu ao trabalho de responder. As mais novas esperavam o pão ficar pronto enquanto seus pés descalços balançavam sob o piso de madeira. Lana colocou um avental surrado com a estampa de um Snorlax para dar conta da louça enquanto preparava sanduíches e também esquentava a comida de sua avó. Eu não tinha percebido até então que havia uma televisão de tubo velha ligada na sala com o som bem baixinho, a princípio imaginei que só estivesse ali para que o som preenchesse a casa, mas havia uma idosa sentada de frente em absoluto silêncio e sem mexer um músculo sequer.

— Fica à vontade, tá? — disse Lana sem olhar pra mim. — E se as duas começarem a fazer perguntas demais, pode ser grosso com elas.

Eu assenti e me sentei junto à mesa. O que Lana tinha de calma e tranquila, suas irmãs mais novas se mexiam feito duas Ninjask. Harper e Sarah me contaram que tinham acabado de completar dez anos e me bombardearam de perguntas interessantes: de onde eu vinha, se já tinha conhecido algum membro da Elite 4, qual era minha Eeveelution preferida e se já tinha visto os Mantine forrarem o oceano durante a rota de migração.

— A Lana bem que está precisando de um namorado, sabe? — comentou Sarah quando já estava de barriga cheia. — Ela vive cuidando da gente e da vovó desde que a mamãe começou a trabalhar dois períodos.

— É porque se eu deixar vocês duas soltas, vocês destroem a casa — respondeu Lana de costas.

— E ela tá mais rabugenta do que o comum — acrescentou Harper.

— Não imaginei que vocês já tivessem dez anos — comentei, pensativo. Eu estava acostumado a ver as garotas enchendo o rosto de maquiagem, tentando agir como mulheres mais velhas e por isso se vestiam querendo ser adultas para impressionar. Mas as gêmeas pareciam genuinamente crianças que saíam para brincar na rua, longe de aparelhos eletrônicos, fingindo brincar de jornada Pokémon. Elas viviam com leveza.

Quando já estavam satisfeitas depois de tanto comer, as gêmeas se levantaram uma de cada lado e me puxaram pelos braços.

— Tio, quer vir colher algumas Razz Berry com a gente? — perguntou Sarah. — A árvore está cheia e queremos colher antes que os Pikipek venham devorar tudo!

— A mamãe sabe fazer licor de amoras. Só que a gente não tem idade para beber, e por pedimos pra ela fazer sem álcool e aí fica parecendo suco.

— E ele também não tem idade pra beber — retrucou Lana, apontando uma colher de pau na minha direção. — Nada de álcool nessa casa pro senhor também, já te vi aprontar lá no luau.

Eu adorava o jeito como ela se fazia de durona e tentava cuidar dos outros. Seu semblante estava mais disperso desde que chegamos, como se estivesse muito longe dali, mas ela prestava muito atenção no que acontecia ao redor quando ninguém estava olhando e tomava conta de sua avó acamada sozinha.

 

Quando saímos para o quintal, me deparei com uma árvore carregada de frutinhas vermelhas que tornavam seus galhos pesados. Eu nunca vira uma tão cheia, e sua sombra oferecia calmaria e alimento em abundância para um casal de Cutiefly que sobrevoavam ali perto. Comecei a ajudar as meninas a colher até que minhas mãos ficassem sujas de vermelho, enchemos ao menos quatro cestas de palha que ficaram até pesadas. As gêmeas se empolgavam por eu alcançar lugares que elas não conseguiam nem com uma escada.

— Waaa, você é tão alto, tio! Você precisa vir aqui mais vezes para nos ajudar, a árvore fica cheia o verão inteiro!

— Prova uma, prova uma! — disse Sarah.

Estava tão doce que ainda me lembro do sabor. A hora passou voando, como se estivéssemos brincando. Lana se juntou a nós depois de dar comida e trocar as fraldas de sua avó, e quando nos demos conta, todos já estavam com fome de novo. Para o café da tarde, ela preparou ovos na frigideira, recheando um pedaço de pão crocante com manteiga. Eu poderia comer sua comida pelo resto da vida que seria um homem feliz.

Dizem que o laranja do céu de Alola ao entardecer é único e não pode ser encontrado em nenhum outro lugar do mundo. Vim aqui só para concordar. Eu emolduraria a imagem que tantas vezes vi diante de mim, mas nunca fui capaz de capturar essa sensação nem mesmo através das melhores câmeras fotográficas. Se tiver a chance de ver por si só algum dia, eu digo apenas — vá.

A mãe de Lana chegou por volta das oito, completamente exausta do trabalho, embora envolta por um sorriso genuíno ao ver que tinham visita. Ela era uma mulher baixa, com cabelos azuis semelhantes aos de Lana e penteados para o lado. Tanto mãe quanto filha tinham um olhar disperso, como se enxergassem através de mim. Seu jeito materno e cuidadoso, tanto que quando me cumprimentou, parecia encantada por ver um homem na casa.

— Ah, nossa, fazia tanto tempo que a Lana não trazia alguém... Você não é de Alola, certo?

— Não, senhora.

— Por favor, “senhora” aqui é só a minha mãe! Puxa, e você comprou tanta comida, quanta atenção de sua parte.

Nós nos sentamos na sala e a mãe de Lana me falou um pouco sobre a sua família. Me contou que agora viviam apenas elas; quando o marido aparecia, era para causar algum problema. Lana e as irmãs cuidavam da avó que tinha demência e não conseguia mais falar ou se mover, carecendo de cuidados quase que 24 horas por dia. Por isso Lana parecia sempre tão apressada em voltar, se limitando a passar apenas algum tempo fora de casa. Devia ser exaustivo, mas eu apreciava o esforço daquela família em cuidar de um parente ao invés de mandá-la para um asilo.

Enquanto falávamos sobre obrigações, futuro e o preço elevado da comida na época que o turismo estava em alta, de repente a mãe dela me soltou uma pérola:

— Lana, que partidão, hein? Esse aí é pra casar.

— Ele ainda tá na sua frente, mãe.

— Ah, estou só falando pra você não bobear demais, se não quem vai querer sou eu! E você já está na idade e achar alguém para morar junto.

Lana sorriu sem mostrar os dentes, mas foi um riso desconfortável. Era como se ela já tivesse aceitado que nunca iria se casar, nem seria uma boa esposa. Eu acho que ela sentia que era apenas uma garota que sabia fazer pão na chapa com ovos, mas isso não significava que daria conta de todas as outras funções que um relacionamento exige.

— Tio, aproveitando que você é alto, pode trocar a lâmpada do nosso quarto? — perguntou Sarah.

— Não! — Lana retrucou na hora, levantando-se e me puxando pelo braço. — Ele não veio aqui pra trabalhar, veio pra relaxar. Olha, é por isso que eu não trago mais ninguém pra casa, daqui a pouco vão pedir pra ele arrumar até a goteira no telhado!

Lana me levou até o seu quarto e fechou a porta. Percebi que ela trancou. Era um quarto de menina, e ela claramente só dormia ali porque tinha de compartilhar o beliche com as irmãs. Eu gostei do abajur delicado em forma de Luvdisc, mas não havia muito espaço para quase nada. Um pensamento me irrompeu e fiquei chateado ao pensar que o meu quarto devia ser maior do que a casa inteira das garotas, e com frequência eu vivia reclamando da falta de espaço.

Lana ficou parada de frente para a porta, como se finalmente tivesse tido tempo para respirar depois de um mergulho prolongado. O ventilador no teto girava tão fraco que ali devia ficar parecendo uma sauna nos dias mais quentes do ano.

Nós finalmente nos sentamos um ao lado do outro para descansar. Lana dobrou os joelhos e deu dois tapinhas sobre as coxas, me convidando:

— Vem. Deita aqui. Quero te olhar.

Encostei a cabeça nela e quase adormeci no seu colo. Perguntei como era cuidar de uma avó doente, e ela respondeu apenas: “Cansativo”. Perguntei se ela conseguia dar conta de duas irmãs mais novas, e ela respondeu: “Eu me esforço”. Não quis ser invasivo para falar sobre dinheiro, mas o pensamento me ocorreu.

— Vamos só... ficar aqui quietinhos, em silêncio. Tudo bem por você?

Eu concordei. Tinha adorado a família dela. Todas me receberam tão bem, me senti acolhido como há muito não acontecia. Quando passou das dez, eu soube que era hora de ir embora, mas as meninas insistiram para que eu dormisse na casa junto delas.

— Por favor, por favorzão! — disseram Sarah e Harper quase juntas. — A gente pode dividir um colchão, e você e a mana dormem no beliche! Se bem que o seu pé deve ficar pra fora...

— Não se preocupem, estou em um hotel aqui pertinho. E eu me sinto tão sossegado em Alola que posso voltar andando numa boa.

— Cuidado para um Sandygast não te assustar, eles adoram se esconder na orla nessa época do ano — brincou a mãe de Lana.

— Waaaa, você tá naquele hotelzão chique de frente pro oceano? — Harper deu-se conta de repente. — A mana já trabalhou lá, só tem celebridade!

— Sim, sim! Ela limpava quartos, mas odiava o trabalho — comentou Sarah. — Você sabia que ela chegou a ser cotada pra ser kahuna da ilha também?

— O que é um kahuna? — perguntei.

— É tipo um líder de ginásio desses que têm nas outras regiões, só que muito mais legal, porque eles são escolhidos pelos nossos lendários guardiões! Quando a mana tinha quase a nossa idade, ela foi escolhida como capitã para o desafio da Ilha Akala. A mana era uma treinadora incrível, sabe?

Fez-se um silêncio constrangedor, mas tão logo Lana sacudiu a poeira das roupas e se levantou.

— Tá bom, vocês já estão contando demais da minha vida. — Ela praticamente me empurrou para a porta, mas eu sabia que se dependesse daquela família eles nunca mais me deixariam sair. — Deixa que eu te acompanho até a estação. E vocês duas, vão já botar o seu pijama que eu ainda preciso colocar a vovó pra dormir!

— Pode deixar que eu faço isso hoje, querida — respondeu sua mãe. — Você já fez muito.

Eu me despedi da família, já com aquela saudade antecipada que vem antes mesmo da ausência. A rua estava vazia, mergulhada num silêncio quente que era cortado pelo som distante das ondas e o zumbido elétrico dos postes. A luz amarelada era refletida pelas poças deixadas pela maré. Sinto falta disso agora — das noites que pareciam respirar junto com a gente, antes que as luzes frias de LED tirassem a alma das ruas.

O cheiro salgado de maresia fazia contraste com o adocicado das mangas maduras que preenchiam o ar. Cada passo levantava um restinho de areia com grãos se acumulando nas tiras do meu chinelo. Hoje, sorrio ao pensar que era como se o mar se recusasse a me soltar. Lana caminhava ao meu lado, em silêncio. Ela parou de repente de frente pra mim com as mãos escondidas atrás do corpo, como se esperasse que eu dissesse algo.

— Eu adorei passar o dia com você — falei, antes que o momento escapasse. — Será que posso te ver outra vez antes que essas férias terminem?

Ela abaixou o olhar e deu um meio sorriso.

— Claro. Konikoni é pequena. Vamos acabar nos trombando o tempo todo.

— Eu já decidi — brinquei. — Não quero visitar nenhuma das outras ilhas de Alola.

Ela riu, e a risada me fez querer protegê-la todos os dias.

— E o que rolou naquela história de ser capitã? Por que parou? — perguntei.

— Porque eu já estou velha demais para seguir alguns sonhos bobos da infância.

— Não me parecia ser algo bobo.

— Esquece essa história...

— É que não consigo entender por que você simplesmente desistiu de um sonho importante assim.

Lana parou e me olhou de uma maneira que me fez sentir como se estivesse me afogando.

— Eu só fiz o que devia fazer. Chega um momento da vida onde você percebe que dar o seu melhor não é mais o bastante. E só para completar essa história de ser capitã da ilha: depois dos vinte, os treinadores não podem mais se candidatar ou continuar no cargo. Entram novas gerações e você começa a ficar para trás. Eu tentei outras coisas, mas não me adaptei.

Houve um silêncio breve que não consegui contornar.

— Desculpa se fui invasivo — murmurei. — Só acho um desperdício o seu talento ser esquecido assim.

Ela me olhou, e por um instante seus olhos pareceram refletir o brilho amarelado dos postes.

— Relaxa, garotão. Todo mundo tem a sua vez ao sol. E agora a minha família precisa de mim.

— É nobre da sua parte, mas você não devia estacionar sua vida por causa delas.

Lana suspirou, o vento soprou uma mecha azulada sobre seu rosto e creio que ele tenha sido capaz de tocá-la com mais sutileza do que eu.

— Sabe o que eu tô morrendo de vontade de fazer? Pescar — disse ela, mudando o assunto de repente. — É sério, eu sou muito boa nisso. Podemos competir pra ver quem pesca o Pokémon mais raro, ou o maior de todos!

— Isso é um convite pra um encontro?

— Isso definitivamente é um convite pra um encontro. Fico feliz que goste de passar tempo comigo, mesmo que a gente não faça nada demais — disse ela, e o tom de sua voz foi diminuindo. — Às vezes acho que não sou interessante o bastante para que as pessoas me queiram ter por perto.

— Não brinca — respondi. — Eu já tô pensando em maneiras de passar todos os dias das minhas férias com você.

— E os seus amigos?

— Deixa eles pra lá. Já devem estar ocupados com outras garotas.

— Eu te dou um mês pra enjoar de mim — ela riu balançando os braços.

— Isso é um desafio?

— É um aviso. — Lana pegou impulso no pequeno muro de pedras e se aproximou o suficiente para eu sentir o cheiro salgado de sua pele. — Toma cuidado, garotão. Se mergulhar fundo demais, pode ser difícil voltar pra superfície.

 

ii

 

Tentei fazer proveito de cada dia das minhas férias. Alguns dias eu sentia que éramos feitos um para o outro; já em outros, parecia que falávamos idiomas diferentes. Quando relembro essas memórias, posso lhe contar apenas o meu lado da história. Reconheço que falei coisas erradas e que em algum momento as coisas começaram a desandar, parecia que caminhávamos para o último ato de uma comédia romântica e teríamos a nossa confiança um no outro testada.

O mercado de Konikoni fervilhava no final da tarde com luzes amareladas das lâmpadas antigas pendiam entre as barracas. O clima abafado fazia as roupas grudarem na pele, o ar tinha cheiro de sal, peixe grelhado e especiarias. Dava para escutar de tudo ao redor, gente barganhando, rindo alto, um tipo de preocupação alheia que não se via normalmente na cidade grande. Era como se todos ali vivessem um eterno fim de semana e a própria terra não deixasse ninguém esquecer que estava em Alola.

Aos domingos acontecia um evento de leilões de Pokémon raros. Um comerciante trouxera um exímio Clamperl Shiny de coloração única vindo de Hoenn, minha terra natal. A concha tinha um tom arroxeado reluzente e a pérola interna refletia um alaranjado suave, quase iridescente. Ela piscava os olhos tímidos, como uma criatura que entendia mais do que demonstrava. Eu senti pena, afinal, qual seria o motivo dela agora estar tão longe de casa? Teria sido levada de seus semelhantes apenas por apresentar uma coloração rara na natureza? Quando percebi, meu coração tinha decidido antes da minha razão.

Só me lembro do impacto que foi ver tantos zeros no visor da maquininha de cartão. Apertei “confirmar”, e fiz aquilo com um sorriso orgulhoso, quase infantil. Pensei no simbolismo que teria oferecer algo vindo da minha terra natal, Hoenn, para alguém que eu achava que compreenderia o gesto.

Marcamos um encontro em um restaurante que eu gostava em frente ao mar. Lana disse que não teria dinheiro para pagar, mas eu insisti. Ela chegou a sugerir que comêssemos em uma lanchonete ali perto, ou que comprássemos um pastel na feira. Para ela, o simples fato de compartilhar seu tempo com alguém que estimava já seria o suficiente, mas fui idiota em querer impressioná-la.

Quando coloquei a luxuosa Pokébola em suas mãos, fiz isso com carinho sincero, mas hoje percebo que o gesto pode ter parecido que eu a entregava uma aliança de compromisso na esperança de depositar todas as minhas expectativas em alguém.

— Obrigada, mas... não precisava. Não precisava mesmo.

— Mas você disse que gosta de presentes.

— Eu gosto. Mas isso custou muito...

— Mas eu quero poder garantir que você sempre terá acesso a coisas boas. Que possamos fazer viagens juntos, comprar o que você quiser em qualquer loja, comer em lugares chiques, e... Lana, se eu não puder te entregar nada disso, que serventia eu teria?

— Você acha que eu decidi conversar com você aquele dia no luau só porque você ou a sua família tem dinheiro? Isso nunca nem passou pela minha cabeça, e você também não precisa de nada disso para impressionar alguém.

— Mas o valor de um homem só pode ser medido pelo que ele é capaz de oferecer — retruquei agitado, sem me dar conta na tremenda besteira que eu tinha acabado de dizer.

Ela abriu a boca para dizer algo, mas decidiu se calar. Seu semblante voltou a parecer distante, quase humilhada. Finalmente tínhamos tocado naquele assunto proibido — dinheiro. Aquilo soou mais invasivo que qualquer pergunta sobre sua vida pessoal. Era como se, naquele instante, eu tivesse atravessado uma linha invisível. Dizem que para um relacionamento florescer é preciso que os dois lados estejam vivendo um momento parecido em suas vidas, buscando crescer juntos. Mas eu não conseguia entender por que ela se recusava tanto em agarrar a minha mão no momento em que a estendi para ela.

Eu também me senti ofendido, e depois pensei que a pobre Clamperl não tinha culpa de nada. Em outra ocasião já havíamos falado sobre viajar e conhecer o mundo, mas Lana insistia em não sair da ilha. Konikoni era sua âncora, e aquilo começou a doer.

— Até quando você acha que precisa continuar aqui cuidando da sua família? Lana, você também é um ser humano e merece seguir os seus sonhos. Não limite o seu potencial.

Ela levantou os olhos para mim com tristeza e disse que estava sem fome. Quando deixamos o restaurante, ela estendeu a mão em minha direção e disse:

— Vem. Vamos andar.

Caminhamos lado a lado no entardecer. Os postes lançavam aquele brilho amarelo e nostálgico que eu tanto gostava. A brisa do mar balançava os cabelos dela, mas ela não olhou mais para mim, ao menos não da maneira como costumava fazer. Às vezes eu achava que ela iria dizer algo, embora nunca dissesse.

Decidi ao menos acompanhá-la até a sua casa, pois já estava escurecendo. Quando chegamos, notei que havia um carro velho estacionado no quintal. Lana congelou e soltou minha mão.

— Preciso resolver uma coisa. Amanhã nos falamos.

— O que houve, Lana? Eu posso ajudar.

— É coisa minha. Vai dar tudo certo — ela respondeu apreensiva, e então, desapareceu como se confinada dentro de uma caixinha de papelão onde só existia ela e sua família.

O portão fechou atrás dela devagar, com um rangido torturante. Eu fiquei ali parado, com os pés fincados no concreto quente que ainda guardava o calor do sol.

Senti que aquele presente, vindo do fundo do mar, tinha criado uma pequena rachadura entre nós que aos poucos evoluiu para uma fissura no fundo do oceano. E como toda rachadura, ela só precisava de tempo para se expandir.

Lana bateu a porta bateu com força e a casa pareceu engolir o som. Mesmo do lado de fora eu consegui escutar alguma coisa, como se as paredes fossem finas demais para conter as vozes que ali eram caladas. Ouvi o barulho de vidro encostando-se à mesa, e depois, um choro abafado.

E eu não queria escutar, mas escutei. Meu corpo inteiro reagiu antes da razão, a porta se abriu para mim como se soubesse que eu precisava estar ali.

A casa que antes me trouxera uma sensação tão boa de aconchego agora tinha um cheiro azedo de álcool velho. As janelas estavam todas fechadas e ali dentro parecia um forno. No centro de tudo, como se engolisse e crescesse diante das três garotas ali, um homem cambaleava, segurando uma garrafa quase vazia. Seu rosto estava vermelho, e olhos, sem foco.

— Eu já falei pra vocês que essa casa é MINHA! — ele gritou. — Vocês só têm onde morar porque EU permito isso!

Lana estava com as irmãs pequenas no colo, segurando-as como se usasse o seu corpo para impedir que a tempestade as atingisse. O rosto dela... o rosto não dizia nada. Nenhuma raiva. Nenhum medo. Seu silêncio era tão profundo que parecia gritar mais alto do que qualquer grito daquele homem.

Quando apareci na porta, Sarah e Harper correram até mim aos soluços.

— É o tio! O tio veio!

Eu, que mal entendia o que estava fazendo ali, de repente ganhei um papel que não pedi. As meninas se agarraram às minhas pernas como quem encontra uma ilha para se refugiar.

O homem me encarou. Parecia medir cada centímetro da minha aparência, como eu me vestia, o que estava usando, criando toda uma ideia de mim antes mesmo que soubesse o meu nome.

— Você não é daqui. O que você quer com as minhas filhas?

— É só um amigo — Lana respondeu rápido. — Deixa ele fora disso.

— Ele é mais do que isso! — gritou Harper, num fio de voz. — Ou talvez... a gente queria que fosse.

O homem deu uma risada curta e seca, fungando o nariz.

— Amigo, é? Não quer namorar uma delas? Quem sabe assim tiro ao menos um desses pesos das minhas costas. A Lana é cabeça dura e um pouco insuportável quando abre a boca, mas se preferir as outras duas...

As crianças abaixaram a cabeça. Lana cerrou os punhos. Meu sangue ferveu.

— O senhor está alterado — falei, tentando manter firmeza. — Não devia falar assim na frente das crianças.

— Alterado? Eu estou na minha casa! — Ele deu um passo pra frente e quase tropeçou nos próprios pés. — E falo o que quiser!

Ele não me intimidou. Em minha frente eu via apenas um homem quebrado, consumido por vícios e frustrações que só tinha ele mesmo a culpar. Um homem que afundava e tentava puxar todos junto com ele para um abismo.

Quando percebeu que não tinha mais força alguma para intimidá-las, ele resmungou alguma obscenidade e virou-se para ir embora.

— Eu volto pra cobrar a mãe de vocês — resmungou, apontando para as meninas com a garrafa. — A menos que o seu amiguinho aqui queira pagar as contas, ou daqui a pouco v todos para o olho da rua. Dinheiro não dá em árvore, vocês ouviram? Se ninguém aqui quiser trabalhar e preferir ser uma vagabunda que nem a sua irmã, vão ter que aprender a ser boas em outra coisa. Ser adulto é uma merda, mas pior ainda é ter que bancar um bando de gente ingrata.

E saiu, batendo o portão de ferro com força.

O silêncio que ficou depois foi tão pesado que parecia criar forma. Lana soltou o ar, como se tivesse segurado por anos.

— Me desculpe por ter feito você passar por isso — ela murmurou, olhando para as próprias mãos, não para mim.

Lana prometeu levar as irmãs para tomar sorvete na manhã seguinte, mas pediu que elas fossem dormir porque no dia seguinte teriam aula. Quando saímos, o ar abafado lá fora parecia um alívio. Toda Konikoni parecia suspirar junto com ela.

— Lana, se o problema é dinheiro, eu posso ajudar — falei outra vez, mesmo sabendo do perigo de entrar naquele tópico. — Estou gostando muito de você. Pensei que se resolvermos as coisas por aqui primeiro, depois você poderia passar um tempo comigo em Hoenn.

Seu semblante pareceu sério, porém, gentil. Todas as vezes que tivemos aquelas “discussões”, Lana se preocupou em não me magoar, mesmo que aquilo significasse esconder os próprios medos e frustrações de mim. Ela me protegeu tanto que, em sua necessidade de me ter ao seu lado, acabou me fazendo mal também.

— Você fala tanto sobre viajar, estudar, crescer... eu acho tudo isso lindo. Mas o meu mundo é só isso. — Lana olhou para a casa, como quem olha para um barco afundando, embora ainda se recusasse a abandoná-lo. — Acho que você nunca abriria mão do seu mundo pra viver o meu, e está tudo bem. Mas não finja que abriria.

Senti o chão sumir sob meus pés, porque talvez ela estivesse certa.

— Lana, eu quero cuidar de você. Quero que seja minha namorada. Vou te proteger. Posso te dar o mundo. Isso não é o bastante?

— Você acha mesmo que pode “me dar o mundo”? — disse com voz baixa, mas firme. — Você não quer cuidar de mim. Quer se sentir útil. Quer preencher um vazio seu. Eu não preciso de um salvador.

— Por que você é tão teimosa? Eu só quero ajudar!

— Eu não quero dever nada a ninguém! — ela respondeu, e sua voz finalmente quebrou. — Já basta o que vivo dentro daquela casa. Por favor... não me prenda também.

Quando tentei abraçá-la, ela se afastou num primeiro instante, mas então se lembrou das tantas vezes em que encontrara conforto em mim, e por isso se deixou levar por um sentimento que um dia existiu dentro de nós.

O abraço dela sempre foi aconchegante, como um lar quente ao qual eu sempre desejei retornar. Ela tocou meu rosto, como quem segura algo prestes a se partir.

— Por você eu mergulharia fundo — murmurei. — Confio em você desse jeito.

— Por favor, nunca compare a sua luz com a de ninguém. Você tem um brilho que é só seu, e você não deve diminuir ele para que alguém se encaixe. O futuro é incerto, mas se dermos um passo de cada vez, podemos enxergar algo. Nós escolhemos nosso caminho e bem devagar vamos nos tornando adultos. Quando seu coração ficar pesado, feche os olhos e tente escutar... eu estarei com você.

“Escutar? Escutar o quê?”, pensei. Mas nunca perguntei.

 

Eu te falei que nunca mais amaria ninguém, mas eu menti. Tantas vezes insinuei que iríamos para qualquer lugar onde ninguém no universo pudesse nos encontrar. Iríamos mais uma vez dançar sob a luz das estrelas com a areia branca sob nossos pés. Eu disse que eu nunca te deixaria se sentir sozinha e que voltaria para te buscar, mas não fui.

Amores de verão são estranhos por isso — uma confusão intensa que arde como o sol, mas desmancha como a chuva. Tentei me tornar uma pessoa melhor todos os dias. Não podemos voltar ao passado para consertar os erros e nos pegamos imaginando: “Será que teria sido diferente? Será que fiz errado em me abrir? O que há de errado comigo?”.

Para Lana, ser ajudada significava dever algo — e ela já devia demais ao mundo. Eu queria pavimentar um caminho novo, mas ela queria consertar o antigo. Eu queria lhe dar amor, mas ninguém nunca a ensinou como recebê-lo.

Não existe amor sem honestidade. Para alguns é muito fácil entregar, mas difícil receber de volta e se achar digno desse amor quando se passa uma vida inteira recebendo o mínimo. Trancamos o nosso coração e entregamos a chave nas mãos de uma única pessoa, mas às vezes o outro não estava pronto para se assumir como o guardião de tamanho tesouro — o amor de alguém. Ou talvez eu que não tenha conseguido prender a respiração por tempo o suficiente para mergulhar nela e entender os seus problemas, abraçá-la sem tomá-los para mim, ter a maturidade de querer crescer junto e entender que um relacionamento se constrói nas adversidades, e não apenas na parte boa.

Muito tempo se passou desde então. Eu nunca mais passei as férias com a família em Alola. Minha esposa pediu que eu desmontasse o beliche de que estava infestado de Grubbin comendo a madeira. No fundo de uma das gavetas, encontrei a Heart Scale perdida nos fundos, ressecada, mas ainda emitindo um brilho suave nas cores do arco íris. Tantos anos se passaram, mas aquele amor de verão ficou gravado em algum lugar que nunca pude esquecer.

Fui até a praia devolvê-la ao mar — o mesmo mar que carregava meus pés com calor, areia e memórias que insistem em ficar mesmo quando não deveriam.

Um dia as lembranças dela desaparecerão, como tudo nessa vida. Ainda me lembro desses dias com ternura. O amor de um pode ser profundo e intenso, mas raso para o outro. Sentei-me na areia quente e contemplei a maré chegar mansa. Fechei os olhos para escutar o seu som que ainda carregava a voz dela, como um eco que permanece.

— Posso ouvir o oceano.


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